O Problema da Alma

A separação do homem entre alma e corpo é tão pré-concebida na mente das pessoas, que quando se fala de pós-morte logo se pergunta: "E para aonde vai a alma?". Neste tipo de pergunta geralmente existem os seguintes pré-conceitos:
  • Alma é uma entidade real e consciente independente do corpo;
  • Alma é imortal, pois morre somente o corpo.
Essas premissas já faziam parte do pensamento antigo como no Egito e era comum também na filosofia grega a partir de Platão, influenciando inclusive a interpretação bíblica da época até hoje, com uma concepção dualista do ser humano.

Quando se lê na Bíblia palavras como alma, corpo e espírito é comum pensar em entidades próprias, mas nunca se pensa em estados diferentes do homem, representações ou consequências de suas relações ou valores com o exterior, seja homem, uma entidade divina ou a natureza. Nesse sentido, na Bíblia não há qualquer intenção antropológica em definir o homem como alma e corpo ou outra coisa (recomendo "Criados à Imagem de Deus" de Anthony Hoekema).

Ora, podemos ver determinada pessoa como um pai e como um filho ao mesmo tempo, não como entidades reais em si, coexistentes conscientemente, entretanto como conseqüências naturais da vivência do homem. A idéia de moral, de certo e errado, de espiritualidade são valores nascidos das relações. A existência dos valores depende da existência das relações e por isso alguns valores podem ser efêmeros ou eternos. O ódio pode se tornar em amor, quando o inimigo passa a ser um amigo. Na eternidade, a relação espiritual entre o Criador e sua criatura pode envolver um amor eterno, desde que a criatura exista eternamente. No caso do cristianismo, por exemplo, obviamente se Deus passa a amar eternamente uma criatura, esta não deixará de existir após a morte, contudo isso não quer dizer que devemos perguntar: "E agora? Para aonde vai a alma?".

Um grande problema para uma mudança nessa mentalidade de separação entre alma e corpo é o abalo na consciência da fé. Existem doutrinas no cristianismo, seja católico ou protestante, que dependem dessa concepção para terem um arranjo lógico equilibrado. É o caso do Seio de Abraão, do Purgatório, do céu e inferno "temporários" ("aguardando" o Juízo Final), da comunicação com os mortos etc. E também toda uma religião é afetada como é o caso do Espiritismo cujo fundamento principal é a existência do espírito: uma entidade real, própria e separada do corpo. Aliás, nessa religião o fundamento da própria doutrina são os fenômenos de comunicação com o mundo espiritual. E não são reais? Do ponto de vista cristão, os fenômenos em si são reais! Pelo menos quando não há charlatismo. Porém a interpretação dada é passível de falhas. Se Jesus é uma farsa, todo o cristianismo perde o seu sentido.

O modelo tradicional da alma "esperando" consciente e independentemente a ressurreição ou o "retorno" é uma pressuposição, cuja lógica vem sendo hoje cada vez mais criticada, por causa da própria idéia cristã de eternidade, em que a ressurreição final não aconteceria num futuro temporal. Logo, inexistindo tal futuro, a única solução para o problema da alma seria voltarmos à idéia profundamente bíblica da eternidade como "simultaneidade total".

Eternidade significa um "agora simultâneo". E neste "agora" de Deus, não há nada que se deva "esperar" no futuro. Tudo é agora. Isto significa que, no momento em que o ser humano entra na dimensão da eternidade, ele entra numa dimensão de simultaneidade, na qual tudo aquilo que nós só podemos imaginar em termos de sucessão no tempo acontece num mesmo momento simultâneo e atemporal” ("Escatologia da Pessoa – Vida, Morte e Ressurreição" de Renold Blank - Editora Paulus).


Agostinho declara que a eternidade não é o tempo dilatado ou esticado, mas a simultaneidade de todas as coisas. “Nunca se acaba o que estava sendo pronunciado, nem se diz outra coisa para dar lugar a que tudo se possa dizer, mas tudo se diz simultaneamente e eternamente, se assim não fosse já haveria tempo e mudança e não verdadeira eternidade e verdadeira imortalidade” (Confissões de Agostinho).

Comentários

Aislan Fernandes disse…
Texto revisado e corrigido.

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