Justiça Divina – Conceitos e Pré-conceitos




Em todas as religiões e na maioria das pessoas, desde a antiguidade, podemos encontrar um conceito popular em comum de “justiça divina”. Quando as pessoas são questionadas a respeito da justiça de um Deus normalmente expressam a seguinte idéia: existe uma lei de causa e efeito da qual a justiça de Deus é cumprida sobre o homem (de modo a levá-lo ao progresso moral).

Nas religiões orientais essa lei é chamada de carma, com pouca variação em seu conceito. E algumas justificativas comuns para essa idéia são utilizadas:
  • Deus trata todos iguais, sem preferência (o que seria injustiça), e por meio das reencarnações todos obteriam a oportunidade para adquirir as mesmas aptidões.
  • Explicação para a existência do mal, das injustiças que cada um sofre. Por isso Deus não tem responsabilidade nenhuma na existência do mal. Se estamos sofrendo algo é porque estamos recebendo o efeito de ações (em vidas) passadas e aprendemos com esse sofrimento para evoluirmos (caso não estejamos em missão de orientar outros). A maldade da humanidade deixará de existir quando “cansados das maldades e a mercê da bondade divina que oferece sempre uma nova oportunidade de recuperação” (FONSECA, 2000, pg 22).
  • A frase (bíblica) “colhemos o que semeamos” aponta para a lei de causa e efeito. Essa lei é inquebrável, logo todo homem que fizer um mal receberá esse mal porque a justiça de Deus não é falha!
  • Jesus veio como exemplo porque um inocente não poderia ter sido punido por pecados que não cometeu (Ezequiel 18.20). É inominável injustiça Jesus, alguém sem pecados, pagar pelos pecados de outros, pois a “cada um segundo suas obras” como na lei da causa e efeito (FONSECA, 2000). Jesus seria então o Salvador no sentido de catalisador (guia-exemplo-modelo) para a evolução de cada um.

No cristianismo, no entanto, a justiça divina depende da pessoa de Jesus Cristo e não de uma lei de causa e efeito (GEISLER; AMANO, 2000).

As religiões não-cristãs e a maioria das pessoas, inclusive cristãs, não consideram tal idéia ou por desconhecimento ou por ignorar conceitos básicos. Com tais conceitos é possível entender porque no cristianismo:
  • Pode haver tratamento diferenciado sem haver injustiça ou acepção de pessoas, se entendido a misericórdia como não-justiça.
  • E a existência do mal é de responsabilidade do próprio Deus e mesmo assim Ele não é mau, se entendido como Ele assume a responsabilidade pelo mal.
  • Nem todo mal (sofrimento) que colhemos é fruto de um mal que praticamos (contra outras pessoas), se entendido a atuação de Deus de forma soberana diante de um princípio geral e não limitado ou restrito a uma lei universal de justiça.
  • Jesus mesmo inocente poderia ter sido punido pelos erros dos outros sem haver qualquer injustiça, se entendido o conceito de amor santo baseado no hierarquismo moral.

Misericórdia como não-justiça


O juízo de Deus é justo porque é baseado na retribuição dos nossos procedimentos (Romanos 2.6). Nada mais justo do que retribuir conforme o que fazemos e, portanto, merecemos, não é verdade? Isso é justiça - retribuir conforme o que merecemos (Romanos 2.7-10). Mas precisamos enfatizar a diferença entre justiça e misericórdia:

“Deus nem sempre age com justiça. Às vezes age com misericórdia. Misericórdia não é justiça nem injustiça. A injustiça viola a retidão. A misericórdia manifesta bondade e graça, mas não viola a retidão. Podemos ver não-justiça em Deus, o que é misericórdia, porém nunca veremos injustiça nele” (SPROUL, 1997).


Como a retribuição no julgamento é baseada no procedimento não há, portanto, acepção entre pessoas (2.11). Este é, no entanto, um tema bastante controverso e desconhecido entre os cristãos. Pois não fazer acepção de pessoas é não ofender um princípio de justiça a priori; refere-se ao exercício do julgamento dando o que é justo. Já no exercício de misericórdia, da qual boa ação ninguém tem direito ou merecimento, uma distinção de pessoas pode existir sem ofender qualquer princípio de justiça. Cole dá um exemplo claro disso no problema em considerar a acepção de pessoas algo injusto em casos de misericórdia:


“Pela mesma igualdade de raciocínio [considerar a acepção injusta em caso de misericórdia], ela faz o governador de um estado soberano, injusto ao perdoar um ou mais homens, a menos que esvazie a prisão e solte todos os prisioneiros. [...] Todos podem ver que um governador, ao perdoar alguns homens não prejudica os outros que não são perdoados. Os que não são perdoados não estão na prisão porque o governador recusou-se a perdoá-los, mas porque eram culpados de um crime contra o estado” (COLE, 2002).


Vejamos um exemplo na Bíblia. Em toda Páscoa um criminoso era solto pela escolha do povo, não porque ele merecia mais (pois ninguém na prisão merecia), mas porque o governador estava usando de misericórdia, logo não estava fazendo acepção de pessoas quando não escolhia também os outros que continuaram pagando seus crimes na prisão conforme a aplicação da justiça (Mateus 27.17) e não foram condenados porque não foram escolhidos, porém pelos seus próprios atos criminosos. Esta escolha é um exercício de misericórdia e não de justiça. Nesse sentido, no julgamento, Deus não faz acepção de pessoas (Levíticos 19.15; Deuterônomio 1.17; II Crônicas 19.7; Provérbios 24.23). A frase "porque não há no SENHOR nosso Deus iniqüidade nem acepção de pessoas" (II Crônicas 19.7) é referente ao desempenho de julgamento e não da aplicação do Seu amor (ou graça). É conselho dado como um aviso aos juizes de Israel para que julguem com consciência e honestidade.


Existem poucas referências que mencionam “aceitação de pessoas” em ambiente outro do que de julgamento (Atos 10.34; Efésios 6.9; Tiago 2.1,9). Essas passagens ensinam que não devemos praticar uma preferência entre quem devemos entregar a mensagem de Cristo (Atos 10.34) nem devemos preferir uma pessoa sobre outra quando todas merecem igualmente do bem de nós (Tiago 2.11).


Por isso, os judeus foram escolhidos e não outros povos para receberem primeiro a palavra de Deus na forma de lei (além de outros objetivos). Eles não mereciam, não havia nada neles de vantagem sobre outros povos (Deuteronômio 7.7). Por uma questão de misericórdia Deus fez acepção em escolhê-los. Só Deus tem o direito de fazer isso!


Deus aceita a responsabilidade pelo mal


Geralmente temos a imagem de Deus que só conhece ou tem poder sobre o mal que nos acontece depois que rogamos a Ele. Será que há um átomo fora do controle de Deus? Será que há algo maior do que próprio Deus?

"Eu sou o Senhor, e não há outro. Eu formo a luz, e crio as trevas; eu faço a paz, e crio o mal; eu, o Senhor faço todas estas coisas" (Isaias 45.6-7).



A palavra traduzida como "crio" é bara. Que é usada para criações especiais. É a mesma usada para "No princípio criou Deus os céus e a terra". Desta forma, temos que Deus aceita a responsabilidade pelo mal em Sua criação. Ele não é apanhado de surpresa pela presença do mal. Ele não é aquele ser limitado que não sabe por que seu filho ou criatura passou a sofrer e procura fazer todo o impossível para mudar a situação (um ser mutável apesar de poderoso). Ele controla a existência do mal. O mal tem o seu início e fim determinado (existência relativa), por isto não depende das ações de suas criaturas para o mal se extinguir. O mal não é uma força em rivalidade com Deus. Não é outro "senhor". A idéia do Diabo como em pé de igualdade contra Deus é crendice popular (cristã). Deus é o bem supremo e não uma força de bondade em rivalidade contra o mal.


Convém ressaltar que Deus não é criador do mal no sentido simplista de quem coloca uma arma na mão de um criminoso e o guia até o cenário e situação do crime, caso contrário não seria possível entender os dois versículos seguintes de forma harmoniosa:


"Varões israelitas, (...) Jesus, o Nazareno (...), sendo este entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o matates, crucificando-o por mãos iníquios" (Atos 2.22,23)

"Ninguém, sento tentado, diga: De Deus sou tentado; por Deus não pode ser tentado pelo mal, e a ninguém tenta. Mas cada um é tentado, quando atraído e engodado pela sua própria concupiscência" (Tiago 1:13,14).



Wright coloca que Deus é a primeira causa de tudo o que acontece e que as causas secundárias como, por exemplo, Satanás e Adão, são as últimas coisas na seqüência dos eventos de quem os pecados procedem diretamente. Pois uma causa pode ser última, Deus, ou imediata, como o homem. E por isso segundo ele o pecador, não Deus, é o autor do pecado pela mesma razão que um pai não é o autor do livro de seu filho (WRIGHT, 2002).

Princípio geral de justiça


Na literatura do Antigo Testamento há um princípio geral de causa e efeito, apoiando a crença de que boa conduta produz bons resultados e má conduta maus resultados (Provérbios 11.4, 28; 16.18). No entanto tal princípio não é absoluto, inquebrável. Podemos verificar isto na vida de Jó. Pessoa reta e inocente (Jó 1.8; 2.3), quando ele clamou ao Senhor a razão de seu grande sofrimento, Deus não respondeu apontando para nenhum pecado em sua vida (Jó 13.3,14; 23.3-5; 9.3; 10.2), mas falou de Sua soberania sobre todas as coisas.

Francis Schaeffer (SCHAEFFER, 2002) procura mostrar que um Deus pessoal e infinito é a única explicação racional para o fato de existirmos, de sentirmos e de nos relacionarmos com os outros, porque se fosse um Deus impessoal (uma força ou leis divinas) não haveria sentido na vida, nos nossos atos. E se fosse finito seria como um dos deuses gregos, limitados por padrões (morais e físicos) acima deles mesmos. Um Deus pessoal e infinito se encaixa perfeitamente na realidade de não conhecermos exaustivamente o ser do homem e do próprio Deus e vivermos com os dois em harmonia, por isso Deus se revelou ao homem não de forma exaustiva, porque somos criaturas finitas, contudo de forma suficiente a nos orientar a viver com o próximo e com Ele mesmo.


“Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra?” (Jó 38.4).


Uma função das leis do Antigo Testamento era restringir o pecado humano, ameaçando com punição as faltas contra ela mesma. Essa função da lei não operava nenhuma mudança interior no coração humano, fazendo-o justo ou reto ao obedecê-la. Mas permitia aos seres humanos uma convivência social. Vivemos em sociedade para nos proteger uns dos outros. As exortações do tipo “colha o que você semeou” (Gálatas 6.7) que pertencem ao princípio da retribuição são na verdade um tipo de execução coercitiva da lei; presente na mesma intenção do princípio determinativo da punição justa de Êxodo 21.26,27 (“olho por olho”).


Amor santo


Um inocente não pode ser punido por pecados que não cometeu (Ezequiel 18.20). Uma pessoa deve salvar os outros ao ponto do auto-sacrifício (Marcos 10.45; João 15.13). Um soldado que se deita sobre uma granada para restringir o impacto sobre o pelotão ao redor não será culpado de suicídio, entretanto admirado pelo seu amor sacrifical. É a hierarquia de mandamentos morais que explica a falta de conflito entre esses dois princípios morais numa mesma ação (GEISLER; AMANO, 2000).


Os apóstolos já haviam tido este entendimento: Deus dispensa a pessoa do dever de guardar uma lei moral menor, desde que tal pessoa não a pudesse guardar sem com isso quebrar uma lei maior. Há ocasiões em que obedecer à lei humana governamental (Romanos 13.1) entra em conflito com a obediência a Deus, portanto neste caso devemos obedecer à lei moral superior, de Deus, que nos livra da inferior, governo humano (Atos 4.1-31).


Sem dúvida nenhuma a morte de Cristo na cruz nos deixou um exemplo moral grandioso, no entanto Jesus era inocente e se entregou para ser punido pelos nossos pecados (Isaías 53; 1 Pedro 2.24; 3.18; 2 Coríntios 5.21). Pela sua obra, chamada de expiatória (satisfação penal de modo a não ter deixado qualquer impunidade) e de vicária (recebeu a delegação para exercer o papel de outrem), Jesus se tornou o “nosso resgate” (ver Mateus 20.28), quem “carregou nossos pecados” (2 Coríntios 5.21; Hebreus 7.26,27; 1 Pedro 2.24), nosso Redentor, que “nos comprou com seu próprio sangue” (Atos 20.28), o “Cordeiro do sacrifício” (João 1.29,36; Atos 8.32; 1 Pedro 1.19).


Jesus praticou o amor santo: não sofreu injustiça e não deixou qualquer impunidade, e num mesmo ato, demonstrou amor em seu auto-sacrifício. Não se trata de amor sentimental que arbitrariamente desconsidera a justiça.


Considerações finais


Só verdadeiramente rejeitamos alguma crença quando a conhecemos em seus pressupostos e implicações, caso contrário, só estamos ignorando e não rejeitando. E no máximo, normalmente ignoramos algo com base em estereótipos.


O Cristianismo está centrado em Jesus Cristo e este texto é apenas um começo para o seu entendimento completo, não necessariamente aceitação.


Referências


FONSECA, Ribamar. 2000 Anos Depois…Editora DPL, 2000.

GEISLER, Normam L, AMANO, J. Yutaka. Reencarnação. Editora Mundo Cristão, 2000.

SPROUL, R. C. A Santidade de Deus: A grandeza, a Majestade e a Glória de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 1997.

COLE, C. D. Doutrina Bíblica da Eleição [online]. Disponível na Internet via WWW. URL: http://www.textosdareforma.net. Arquivo capturado em 05 de janeiro de 2002.

WRIGHT, R. K. Mc Gregor. A Soberania Banida: Redenção para a cultura pós-moderna. São Paulo: Cultura Cristã, 2002.
 

SCHAEFFER, Francis A. O Deus que se Revela. São Paulo: Cultura Cristã, 2002.

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