Misericórdia


A misericórdia de Deus não faz sentido se pelo menos Jesus não for Salvador e o Espírito Santo não for regenerador.

Um dos fundamentos do Cristianismo é a Trindade, ou melhor, a Triunidade, não por uma questão dogmática, como se fosse uma forma de se aproximar de religiões politeístas ou apenas uma variação de politeísmo (a crença em vários deuses). R.C. Sproul, teólogo protestante, explica que essa doutrina não é, por exemplo, uma fórmula como 1 + 1 + 1 = 1. O ponto aqui não é explicar tal coisa (veja referência).

A questão principal é mostrar como esse fundamento é um dos alicerces para a misericórdia de Deus não ser uma ação injusta, logo sem sentido. Já imaginou Deus sendo injusto por causa de sua misericórdia? Muitos conseguem imaginar isso facilmente, tanto de forma cômica ou prática. 

Exemplo disso é o personagem de Deus no seriado animado "Os Simpsons", que sempre perdoa todo mundo, independente dos pecados, porque ama a todos. Ele simplesmente "deixa para lá" por amor. Certamente isso é um tipo de sentimentalismo que desconsidera qualquer noção de justiça, mantendo de um lado a impunidade enquanto do outro mostra amor, apenas sentimental. E a injustiças cometidas ficam sem qualquer retribuição ou julgamento?

Ora, o juízo de Deus é justo porque é baseado na retribuição dos nossos procedimentos, como está escrito na Bíblia: "O qual recompensará cada um segundo as suas obras. A vida eterna aos que, com perseverança em fazer bem, procuram glória, honra e incorrupção; Mas a indignação e a ira aos que são contenciosos, desobedientes à verdade e obedientes à iniqüidade" (Romanos 2.6-10). Nada mais justo do que retribuir conforme o que se faz ou merece. Isso é justiça: retribuir conforme o merecido.

Dessa forma, a misericórdia não pode gerar injustiça, porém da mesma forma não pode seguir um princípio de justiça! Assim como não deve haver impunidade, não deve também ser motivada por um critério de justiça. Isto é, “Deus nem sempre age com justiça. Às vezes age com misericórdia. Misericórdia não é justiça nem injustiça. A injustiça viola a retidão. A misericórdia manifesta bondade e graça, mas não viola a retidão. Podemos ver não-justiça em Deus, o que é misericórdia, porém nunca veremos injustiça nele” (SPROUL, 1997). 

Geralmente há uma confusão em torno dessa diferença entre juízo e misericórdia de Deus, como, por exemplo, quando Deus faz alguém passar pelos mesmos males que praticou no passado, como retribuição ou expiação, não está agindo com misericórdia, porém com justiça. Se Ele está dando conforme o merecido, retribuindo com base nas obras da pessoa, então está obedecendo um princípio de justiça e não fazê-lo é injustiça, independente de haver em seguida arrependimento, aprendizado ou evolução por parte de quem foi punido.

É comum utilizarem esses resultados da punição como frutos da misericórdia de Deus, como se Ele estivesse dando livremente uma nova oportunidade para o pecador não apenas pagar por seus erros, mas aprender com eles. No entanto, a injustiça não é negociável, flexível ou passível de esquecimento qualquer, caso contrário haveria impunidade. Se está pagando pelos pecados, está cumprindo um ato de justiça e não de misericórdia. 

Esses resultados na verdade são ações realizadas pelo homem e não por Deus. Se o homem não quiser se arrepender, não será forçado contra sua própria vontade, porém não deixará de pagar pelo que fez. Onde está a oportunidade, o amor ou a misericórdia nessa punição? Não há! É ilógico punir alguém por amor e não por justiça. Se não houver punição, não há justiça, se forçar o crescimento após punição, não há verdade. E se Deus depende do homem, de esperá-lo se arrepender de seus atos, então não é Deus, todavia mais um deus.

Logo, se foi o homem que aproveitou a punição como uma forma de crescimento, então o mérito do resultado foi seu e não de Deus. Nesse caso foi o homem quem se perdoou, quem foi misericordioso consigo mesmo, quem agiu livremente e decidiu não mais cometer o mesmo erro. A tal "oportunidade" na verdade era necessária ou obrigatória para haver justiça e se tornou de fato oportunidade para o homem.

PARTE 2

A misericórdia, no entanto, é livre, diferente da justiça. No exercício de misericórdia, da qual boa ação ninguém tem direito ou merecimento, uma distinção ou escolha de pessoas a receberem tal benefício pode existir sem ofender qualquer princípio de justiça. Cole dá um exemplo da falta de entendimento ou clareza dessa liberdade da misericórdia: 

"Considerar a acepção injusta em caso de misericórdia, faz o governador de um estado soberano, injusto ao perdoar um ou mais homens, a menos que esvazie a prisão e solte todos os prisioneiros. [...] Todos podem ver que um governador, ao perdoar alguns homens não prejudica os outros que não são perdoados. Os que não são perdoados não estão na prisão porque o governador recusou-se a perdoá-los, mas porque eram culpados de um crime contra o estado” (COLE, 2002).

Essa escolha é um exercício de misericórdia e não de justiça. Nesse sentido Deus não faz acepção de pessoas conforme alguns trechos bíblicos: Levíticos 19.15; Deuterônomio 1.17; II Crônicas 19.7; Provérbios 24.23. Nelas, a frase "porque não há no SENHOR nosso Deus iniqüidade nem acepção de pessoas" é referente ao desempenho de julgamento e não da aplicação do Seu amor (ou graça). É conselho dado como um aviso aos juizes de Israel para que julguem com consciência e honestidade. Aliás, o povo judeu não foi escolhido como o primeiro a conhecer diante de outros povos, a sua Revelação, por causa de algum mérito ou vantagem: "O SENHOR não tomou prazer em vós, nem vos escolheu, porque a vossa multidão era mais do que a de todos os outros povos, pois vós éreis menos em número do que todos os povos" (Deuteronômio 7:7).

Assim, a misericórdia de Deus é independente das obras de quem a recebe, diferente da justiça. Isto é, ninguém recebe misericórdia de Deus por causa de pecados menores ou maiores. Alguns trechos bíblicos resumem tal princípio: "não por causa das obras, mas por aquele que chama" (Romanos 9:11) e  "Compadecer-me-ei de quem me compadecer, e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia. Assim, pois, isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que se compadece" (Romanos 9:15-16).

Dessa forma, a misericórdia bíblica quebra qualquer possibilidade de orgulho do homem amado por Deus.

Entretanto como ficam os pecados do homem perdoado por Deus? Eles são simplesmente esquecidos quando Deus é misericordioso? E se ele voltar a cometer os mesmos pecados? Impunidade duas vezes? Por isso, a misericórdia de Deus não faz sentido se pelo menos Jesus não for Salvador e o Espírito Santo não for regenerador.

PARTE 3

Um dos pontos principais do evangelismo de Jesus era explicar o amor santo de Deus, não um amor sentimental arbitrariamente desconsiderando a justiça. Esse amor foi realizado através do sacrifício de Jesus na cruz. 

Sem dúvida nenhuma a morte dele deixou um grande exemplo moral para a humanidade, no entanto, mais do que isso, ele se entregou para ser punido pelos nossos pecados, conforme várias passagens bíblicas: Isaías 53; 1 Pedro 2.24; 3.18; 2 Coríntios 5.21. Pela sua obra Jesus se tornou o “nosso resgate” (Mateus 20.28), quem “carregou nossos pecados” (2 Coríntios 5.21; Hebreus 7.26,27; 1 Pedro 2.24), nosso Redentor, que “nos comprou com seu próprio sangue” (Atos 20.28), o “Cordeiro do sacrifício” (João 1.29,36; Atos 8.32; 1 Pedro 1.19), entre outros títulos referentes ao pagamento dos pecados de outros e não de si.

“E, se é pela graça, já não pelas obras; do contrário, a graça já não é graça” (Romanos 11:6).

Por meio desse sacrifício, Deus por um lado cumpriu a justiça, não deixando qualquer impunidade, pois Jesus pagou tudo com sua vida (a ofensa de ser infinito aplacada por um ser infinito, pelos pecados de homens através de uma representação humana), e por outro lado, foi misericordioso pois não só livrou o pecador de sua punição futura como também garantiu haver arrependimento, crescimento, evolução ou transformação moral e espiritual sem precisar passar pelos mesmos males que cometeu (pois como retribuição ou pagamento em função do caráter de justiça outro já passou).

Todavia, pode um inocente pagar por pecados não cometidos? De forma nenhuma como escrito em Ezequiel 18.20, no entanto, uma pessoa deve salvar os outros ao ponto do autosacrifício (Marcos 10.45; João 15.13). Por exemplo, um soldado que se deita sobre uma granada para restringir o impacto sobre o pelotão ao redor não será culpado de suicídio, entretanto admirado pelo seu amor sacrifical. Os apóstolos já haviam tido esse entendimento: Deus dispensaria a pessoa do dever de guardar uma lei moral menor, desde que tal pessoa não a pudesse guardar sem com isso quebrar uma lei maior. Há ocasiões em que obedecer à lei humana governamental (Romanos 13.1) entra em conflito com a obediência a Deus, portanto nesse caso devemos obedecer à lei moral superior, de Deus, que nos livra da inferior, governo humano (Atos 4.1-31). 

Jesus além de obedecer esse princípio de hierarquia moral também deixou em evidência que não há uma lei inquebrável de causa e efeito, como se fosse inevitável sofrer por algum mal cometido no passado sem cometer injustiça. Na literatura do Antigo Testamento, por exemplo, há um princípio geral de causa e efeito e não uma lei (como o karma), apoiando a crença de que boa conduta produz bons resultados e má conduta maus resultados (Provérbios 11.4, 28; 16.18). No entanto tal princípio não é absoluto, inquebrável. É um princípio! Podemos verificar isso na vida de Jó. Pessoa reta e inocente (Jó 1.8; 2.3), quando ele clamou ao Senhor a razão de seu grande sofrimento, Deus não respondeu apontando para nenhum pecado em sua vida (Jó 13.3,14; 23.3-5; 9.3; 10.2), mas falou de Sua soberania sobre todas as coisas. Logo, a razão estava no futuro e não no passado. 

Nesse paradigma, certamente hoje, algum evangélico diria que a causa seriam maldições por causa de pecados cometidos ou falta de fé ou um espírita diria serem males cometidos em vidas passadas. No entanto, a vida de Jó é contraexemplo disso tudo.

(Há situações também em que uma ação de amor é semelhante a uma de justiça, porém diferente em sua essência ou motivação. É o caso da disciplina bíblica, um ato de misericórdia em que a pessoa experimenta parcialmente as consequencias de seu pecado, para fins de arrependimento sem necessidade de expiação ou pagamento por eles. Por isso é um ato de amor e não de justiça: "o Senhor repreende aquele a quem ama, assim como o pai ao filho que quer bem" (Provérbios 3:12). Se recebesse totalmente pelos seus pecados, então não haveria necessidade de Jesus pagar por eles.)

Aliás, diferente do que muitos pensam, Deus não nega a responsabilidade pelo mal no mundo, colocando a culpa no livre-arbítrio do homem. Ele não é apanhado de surpresa pela presença do mal. Ele não é aquele ser limitado que não sabe por que seu filho ou criatura passou a sofrer e procura fazer todo o impossível para mudar a situação (um ser mutável apesar de poderoso), porque Ele controla a existência do mal. O mal tem o seu início e fim determinado (existência relativa), por isto não depende das ações de suas criaturas para o mal se extinguir. O mal não é uma força em rivalidade com Deus. Não é outro "senhor". A idéia do Diabo como em pé de igualdade contra Deus é crendice popular (cristã). Deus é o bem supremo e não uma força de bondade em rivalidade contra o mal.

Convém ressaltar que Deus não é criador do mal no sentido simplista de quem coloca uma arma na mão de um criminoso e o guia até o cenário e situação do crime, caso contrário não seria possível conciliar este versículo: "Varões israelitas, (...) Jesus, o Nazareno (...), sendo este entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o matates, crucificando-o por mãos iníquios" (Atos 2:22,23).

Portanto, a misericórdia de Deus não faz sentido se pelo menos Jesus não for Salvador para garantir não haver impunidade enquanto houver misericórdia. E quanto ao Espírito Santo? Tem haver com o "lado visível ou prático" da misericórdia.

PARTE 4

A Bíblia fala numa ação regeneradora, também conhecida como "novo nascimento", interpretada por algumas religiões como reencarnação, porém realizada através da pessoa do Espírito Santo, no pecador, de modo que o arrependimento, a fé e as boas obras se manifestem naturalmente, contudo inseridas como próteses, como dons de Deus. "Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus. Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte” (Romanos 8.1,2). 

Com essa regeneração e com essa salvação, nenhum pecador encontra qualquer mérito em si para ter sido amado por Deus. Dessa maneira, diferente daquela outra situação em que o homem foi misericordioso consigo mesmo e decidiu não mais cometer o mesmo erro, nessa foi necessário receber próteses como uma nova mente, um novo coração e uma nova vontade de modo que suas decisões fossem naturais ou verdadeiras, porém graças a Deus, como escrito na Bíblia: "E dar-vos-ei um coração novo, e porei dentro de vós um espírito novo; e tirarei da vossa carne o coração de pedra, e vos darei um coração de carne (Ezequiel 36:26). A oportunidade do arrependimento aqui nunca seria aproveitada pelo homem sem essas próteses, por causa da "lei do pecado".

“Em verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida” (João 5.24), porque Deus escolheu ser misericordioso aos que desejam recebê-la pelo instrumento da fé, contando que Jesus assumiu a punição para não haver impunidade e com o Espírito Santo para não haver falsidade.

Além disso, o homem que julga ter algum mérito por causa de seu arrependimento ou crescimento moral e espiritual, na verdade para a Bíblia, é tido como um orgulhoso por causa dessa "lei do pecado", como escrita na parábola do fariseu e do publicano:

"E disse também esta parábola a uns que confiavam em si mesmos, crendo que eram justos, e desprezavam os outros: Dois homens subiram ao templo, para orar; um, fariseu, e o outro, publicano. O fariseu, estando em pé, orava consigo desta maneira: O Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros; nem ainda como este publicano. Jejuo duas vezes na semana, e dou os dízimos de tudo quanto possuo. O publicano, porém, estando em pé, de longe, nem ainda queria levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: O Deus, tem misericórdia de mim, pecador! Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque qualquer que a si mesmo se exalta será humilhado, e qualquer que a si mesmo se humilha será exaltado" (Lucas 18:9-14)

O erro fundamental mostrada nessa parábola se encontra na própria introdução: "a uns que confiavam em si mesmos, crendo que eram justos". Essa era a exaltação da qual Jesus se referia. Ele não estava combatendo qualquer tipo de exaltação, porém a confiança na justiça própria, porque não reconheciam as próteses de Deus.



Não é difícil entender a razão por que muitos acham um absurdo alguém amar um inimigo, especialmente por causa do mandamento de Jesus "amai vossos inimigos", pois estão acostumados a um conceito distorcido de misericórdia, geralmente ligado a aspectos de retidão ou justiça. Por isso, o ateu Comte-Sponville acertadamente diz que amar é difícil, porque “só sabemos amar, quando muito, nossos próximos”.

Só assim geralmente amamos alguém: distorcendo o que é amor, removendo seu aspecto de liberdade ou de independência de quem é amado e colocando ingredientes de merecimento como afeto, interesse, retorno, prazer, sangue, amizade etc. Logo, amar a um inimigo não é torná-lo seu amigo ou considerá-lo como tal.

Como pode Deus amar a um assassino, ladrão, estuprador, mentiroso, entre outros adjetivos próximos através do perdão de seus pecados e da transformação de seu caráter? Por que não faz diferença para Ele ser misericordioso com um desses, comigo ou com você?
Referências

[1] SPROUL, R. C. Verdades Essenciais da Fé Cristã - Caderno 1. Editora Cultura Cristã.
[2] SPROUL, R. C. A Santidade de Deus: A grandeza, a Majestade e a Glória de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 1997.
[3] COLE, C. D. Doutrina Bíblica da Eleição [online]. Disponível na Internet via WWW. URL: http://www.textosdareforma.net. Arquivo capturado em 05 de janeiro de 2002.

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