Julgado por comportamento ignorando as crenças (?)

Vez por outra, aparece uma frase curiosa sobre comportamento humano, relacionada com valores, moralidade ou até religiosidade. Exemplo de frases assim são: "Religião não define caráter", "não são suas crenças que definem seu caráter, mas seu comportamento" e semelhantes. Parecem fazer sentido, numa leitura rápida, porém apresentam um erro básico, principalmente quando não se tem um simples conhecimento em comportamento humano, a partir da Psicologia.

Nesse sentido, vejamos primeiro os valores. Eles representam convicções básicas a respeito de algo; contêm um elemento de julgamento, baseado naquilo que o indivíduo acredita ser correto, bom ou desejável (ROBBINS, 2005).

Já o comportamento envolve um conjunto de ações relativamente permanentes que caracterizam uma pessoa (ROBBINS, 2005).

No entanto, os valores geralmente influenciam o comportamento encobrindo a objetividade e a racionalidade (ROBBINS, 2005), aliás, a noção de racionalidade ilimitada pelos seres humanos é contestada desde 1950 por pesquisadores dentro da Psicologia Cognitiva (STERNBERG, 2010).

Na verdade, "usualmente incluímos considerações subjetivas em nossas decisões", "não necessariamente irracionais", mas "racionais, porém dentro de alguns limites", no que se chama de satisfatoriedade. Além disso, usamos "frequentemente atalhos mentais e mesmo vieses que limitam e, algumas vezes, distorcem nossa capacidade para tomar decisões racionais" (STERNBERG, 2010).



Como crenças, incluindo religiosidade ou moralidade, fazem parte dos valores de uma pessoa, não se pode misturar, pior ainda, ignorar a causa pela consequência ou o fator de influência pela coisa influenciada, isto é, quando o caráter de alguém é julgado por causa do seu comportamento, indiretamente as crenças são julgadas, porque determinam muito ou pouco as ações dela.

É como julgar um bom estudante por causa apenas de suas notas altas. Ora, ele não precisou de muito estudo e motivação para tirar uma boa nota?


Agora, quando as ações contradizem com os valores, as pessoas geralmente buscam consistências entre elas através da mudança do próprio comportamento ou de uma racionalização capaz de justificar a discrepância (ROBBINS, 2005).

Inclusive, segundo a teoria da dissonância cognitiva, as pessoas buscam reduzir essas discrepâncias (dissonâncias) porque sentem um desconforto ao perceberem incompatibilidades entre suas atitudes ou entre suas atitudes e seus comportamentos, e então procuram uma estabilidade (por uma racionalização ou mudança de atitude ou de comportamento) em que seja possível conviver com um mínimo possível de dissonância (ROBBINS, 2005).

No entanto certos fatores moderadores podem influenciar a motivação das pessoas para diminuir a dissonância, de modo a não preferirem buscar consistência quando os fatos que causam essa discrepância são de pouca importância ou gerados por imposição externa (ROBBINS, 2005).

Dependendo do caso, essa dissonância pode ser interpretada como sabedoria ou hipocrisia em termos morais. Também pode ser um ato de santidade ou pecado dependendo da religiosidade.



É bom lembrar que em meados de 1662, Pascal já dizia: "todos os homens são quase sempre levados a crer não no que é provado, mas no que lhes agrada", de modo que "nenhum amante será jamais conquistada pelo intelecto, nenhum partidário mudará de lado ou de opinião depois que alguém lhe tenha "demonstrado" o seu erro como se demonstra um teorema, nenhum fanático vai renunciar à sua cegueira por ceder a um raciocínio bem efetuado" (PASCAL, 2005).

E não custa relembrar: "Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e perverso; quem o poderá conhecer?" (Jeremias 17:9).


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ROBBINS, Stephen P., Comportamento Organizacional.  São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2005.
STERNBERG, Robert J. Psicologia cognitiva. São Paulo: Cengage Learning, 2010.

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