Perdendo a fé...


Às vezes, é necessário conversar consigo mesmo, e organizar os pensamentos, numa escrita, de modo a tornar mais clara a confusão sentimental e mental. Uma dessas coisas é a dor, na alma, no momento, diante de uma grande multidão de opiniões imprudentes, ao meu redor, em face das calamidades. Não parecer haver, de fato, virtude nas massas. Todos parecem se sentir justos, porque buscam opiniões justas. Ou bons, porque opinam a respeito da bondade. Ou verdadeiros, porque descobriram verdades. Como se tendo o conhecimento do que é uma boa saúde, logo se tornassem saudáveis.

Alguns perdem a fé com as próprias adversidades, outros com a desumanidade da multidão diante delas. As primeiras podem ser internas à pessoa ou podem ser distantes, em outro país. As segundas podem ocorrer virtualmente, numa rede social, até dentro de um local de fé, numa igreja, ou em si mesmo. Mas que fé é essa que se perde? Como ela se forma? Pois a primeira perdi há muito tempo, e a segunda também estou perdendo, e já não lembro se novamente. A recorrência é sinal de um caminhar sem volta, cada vez mais forte? Então a perda está cada vez mais sem volta.

Deixar-me-ei ser usado por uma linguagem específica, da Ética a Nicômaco, em Aristóteles (bem anterior, e talvez, contextual aos dos autores bíblicos cristãos), para se chegar a uma natureza e causa dessa fé, que se perde. E a fé cristã, a que dizem levar para a paz eterna? Antes, algumas pedras precisam ser tiradas do caminho.

A primeira é o entendimento do nosso próprio caráter moral, do qual a fé cristã pode fazer parte, pois posso ter atos de fé decorrentes de minha fé, logo é preciso distinguir quando é ato ou habilidade. Vejo porque basicamente tenho olhos, assim os atos de visão são resultados da faculdade da visão, no olho. O olho é uma capacidade que permite exercitar a visão.

OLHOS != VER ; HABILIDADE != ATOS

Mas é a qualidade da habilidade que determina a qualidade de seus atos. É possível até ter olhos sem empregá-los, basta fechá-los facilmente. Mas também ao deixá-los meramente abertos indefinidamente leva a outro extremo em que a visão pode ficar prejudicada, pela falta do bom exercício, do exercício moderado - o melhor está nesse meio termo. Não há como sentir a sensação de uma boa corrida, sem correr e sem um corpo adequado. Aliás, posso até correr a mesma corrida do outro, porém a sensação pode ser de dor, tristeza ou decepção, enquanto a do outro é de prazer, mesmo em meio a dor, de alegria e satisfação, porque o corpo não era o mesmo do outro. Não basta desejar algo bom, como se o primeiro passo fosse o único, é preciso adquirir uma habilidade para alcançar melhores resultados, a fim de alcançar o que foi desejado. Não há desejo sem fim, não há ação sem desejo. Ter um corpo não me faz um corredor.

TER CORPO -> PERMITE CORRER ; TER BOM CORPO -> PERMITE CORRER MELHOR ; EXERCÍCIO MODERADO -> PERMITE TER BOM CORPO

Assim, a qualidade do hábito forma o tipo de caráter, o qual determina a qualidade dos atos. A opinião pode acompanhar cada etapa, porém ter opinião sobre tudo indica o exercício da linguagem racional, estritamente falando, não a posse de sabedoria ou virtude moral. Nesse contexto, é preciso distinguir os atos que formam o caráter, dos atos resultantes de um caráter. E na fé não há exceção a isso, pois em vez de um corpo, há o mundo. Ora, se no mundo não houvesse o contingente (o que pode ser ou não ser), não haveria fé de maneira nenhuma. Se toda necessidade (é impossível ser de outro modo) de tudo fosse conhecido, no tempo, por todos, os atos de confiança seriam gerados, por tal confiança inata, exceto quando os olhos do conhecimento se fechassem. Seria uma questão de fechar ou abrir tais olhos, não de os arrancar fora ou os colocar de volta.

AÇÕES DE HÁBITO -> CARÁTER -> AÇÕES DE CARÁTER

E esse hábito da moralidade não pode ser construído de qualquer maneira, como se escolhas repetidas ou regulares, em qualquer circunstância, fossem suficientes. Mas, de fato, a natureza dessas escolhas determina a qualidade do hábito, por sua vez a qualidade do caráter. Logo, a segunda pedra a ser removida é o entendimento dessas escolhas que formam o caráter.

As ações do hábito para formação do caráter precisam ser escolhidas voluntariamente, mas nem todo ato voluntário forma o caráter. Desejar qualquer coisa, até o impossível, opinar sobre qualquer coisa ou agir repentinamente, por impulso ou necessidade (enquanto criança) são voluntários, porque o agente conhece as circunstâncias de sua ação: quem realiza, o que realiza, o que é afetado, que instrumento utiliza, visando que fim e a qualidade com que realiza. A ignorância de qualquer uma dessas circunstâncias torna a ação involuntária, mas não o ato de ignorar qualquer uma delas, o que já é uma má ação, porque não se quer deliberar o que vai fazer - e esse tipo de ação formará um tipo de vício (um caráter mal). Assim não se tira a responsabilidade do bêbado porque estava inconsciente de suas ações, porém porque tinha ignorado o efeito do álcool antes de consumi-la em excesso.

Daí a necessidade de ações formadoras do hábito serem voluntárias, por deliberação, porque ainda há dúvidas ou incertezas que precisam ser analisadas, em determinado assunto - daí a importância da boa educação. Enquanto se aprende uma língua, há dúvidas de como soletrar, depois as dúvidas são de como expressar o melhor pensamento na escrita, sem qualquer preocupação com tal ortografia. Não há mais escolhas em soletrar de uma forma ou de outra, porque não há mais dúvidas. Desse modo, as escolhas dessa formação precisam ser distintas em boas ou más (a opinião busca o verdadeiro e o falso), realizáveis (possíveis) pela própria pessoa (consciente das circunstâncias) e serem meios para se chegar a determinado fim (desejar ser rico não o torna rico).

ATO VOLUNTÁRIO FORMADOR DE CARÁTER:
1. DISTINTO EM BOA OU MÁ = MORAL;
2. REALIZÁVEL = POSSÍVEL;
3. PELA PRÓPRIA PESSOA (CONSCIENTE DAS CIRCUNSTÂNCIAS) = AUTORIA;
4. MEIO PARA SE CHEGAR A DETERMINADO FIM = DELIBERADO.

ATO VOLUNTÁRIO POR DELIBERAÇÃO BOM -> CARÁTER BOM.

Com a fé cristã não é diferente. Há o leite e o alimento sólido. No primeiro, os atos de fé acontecem no momento ainda do hábito, da formação, muitas dúvidas - o conhecimento precisa ser adquirido como se alimentando uma criança bem pequena. No segundo, os atos de fé acontecem após formação, a partir de um caráter formado. E dependendo das circunstâncias de como o primeiro é consumido, pode se formar uma fé (como caráter) de qualidade moral diferente de quem consome o segundo, apesar de ambas poderem ter a característica de serem oposições à visão - na forma são iguais, mas não no conteúdo. Duas pessoas podem correr, porque ambas são capazes disso, por ter um corpo, mas só quem tem o melhor corpo, pode correr melhor. Um tem fé de virtude (melhor) e o outro não.

Agora é preciso remover a última pedra, para entender o contexto maior da fé: a amizade. A amizade é uma reciprocidade de afeto (afeição mútua), de querer bem o outro e com ciência da deferência um do outro. Mas dependendo do tipo de afeição (qualidade amável), a amizade pode ser por utilidade (se busca algum benefício), por prazer (se busca algo agradável) ou por virtude (se deseja o bem enquanto qualidade de bem). A última é mais rara porque demanda mais tempo e familiaridade, para haver tal confiança. Já uma afeição mútua, por causa do prazer gerado pela beleza do outro, tão logo a velhice chegue, a amizade acaba. Na utilidade, basta uma mudança de ocasião.

VOCÊ - AMIZADE - OUTRO
- DE UTILIDADE
- DE PRAZER
- DE VIRTUDE (MELHOR)

A amizade de virtude, assim, é a melhor e mais completa, entre todas as virtudes, como capacidade adquirida, que leva à felicidade, exercício daquela capacidade, que produz, em si mesmo, o bem mais excelente, isto é, é feliz quem é plenamente suprido de coisas boas, por meio da companhia de amigos bons, apesar de suas utilidades ou prazeres.

OLHO = AMIZADE DE VIRTUDE ; FELICIDADE = EXERCÍCIO DA VISÃO

E a amizade pode ocorrer entre diversos tipos de relações, entre pais e filhos, homens e mulheres, senhores e servos, criador e criatura, mas só a amizade de virtude ocorre entre bons, pois se pelo menos uma das partes não for de caráter bom, então a amizade ou é de utilidade ou de prazer, impossível de chegar à felicidade.

Logo para ter amizade com Jesus é preciso ter amizade em fé, na forma (por oposição à visão) e no conteúdo (por caráter). Exemplos de fé, apenas na forma, com Jesus, são moralidades construídas com base em algum tipo de barganha, esperando algum benefício futuro ou no presente (amizade por utilidade), ou com base em experiências místicas ou "sobrenaturais" (amizade por prazer).

VOCÊ - AMIZADE - OUTRO (JESUS, EM FÉ NA FORMA)
- DE UTILIDADE, EM FÉ NA FORMA
- DE PRAZER, EM FÉ NA FORMA
- DE VIRTUDE (MELHOR), EM FÉ NA FORMA E NO CONTEÚDO

E se há amizade de virtude com Jesus, em fé, há felicidade até a eternidade. Agora caminhe, por exemplo, pela Bíblia, e veja se encontra as referências à amizade, virtude, fé e amor no mesmo contexto.

Na vida podemos experimentar uma mistura de vários tipos de fé, assim como de vários tipos de caráter, de virtudes ou vícios. Há momentos em que a tristeza por causa de um vício, acaba revelando uma determinada virtude. Há situações que nos fazem perder um caráter, efêmero, para tornar evidente outro, duradouro.

"Porque quando estou fraco, então sou forte".

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Leituras: Psicologia Cognitiva - Robert J. Sternberg

Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ Λόγος, καὶ ὁ Λόγος ἦν πρὸς τὸν Θεόν, καὶ Θεὸς ἦν ὁ Λόγος. (Como Deus e não Deus?)

Tradução e comentários de Lucas 20:34-38 - os filhos deste e daquele mundo