Quando a alma não é a única esperança - parte 2

Onde estão as nossas memórias? No cérebro, na alma ou no espírito? Quanta e com que qualidade podemos armazenar de informação de cada instante de nossa vida em nós mesmos?

Existe um filme, chamado "Violação de Privacidade" com Robin Williams ("The Final Cut", 2003), em que algumas pessoas possuem em seu cérebro um implante de memória, comprado por seus pais antes mesmo de nascerem, registrando todos os fatos ocorridos em sua vida. Após sua morte esse implante é retirado e, com o material nele existente, é editado um filme sobre a vida da pessoa, que é exibido em uma cerimônia póstuma chamada Rememória. Veja um trailer dele abaixo.




O interessante desse filme, além da própria história, é a simplicidade tecnológica para armazenar, consultar e editar toda a memória de uma pessoa. Isso um dia poderá ser até banal, como é o telefone celular hoje. Até mesmo a ideia de armazenar ou transportar informações que não fossem escritas em um papel, pele de animal ou pedra, era estranha. Nessa situação, as pessoas antigamente poderiam interpretar uma tecnologia de hoje (uma conversa através de um celular) como uma espécie de dom divino ou espiritual. Imagine, então, dispositivos como o pendrive.

Além disso, informações são armazenadas para serem processadas, isto é, captamos o meio externo, interagindo com ele, retornando normalmente alguma reação, como, por exemplo, uma decisão natural ou moral. E muitos definiram vários conceitos a respeito desse comportamento: livre-arbítrio, vontade, emoções, intelecto etc.
Com a antropologia filosófica antiga não foi diferente: Aristóteles colocou o intelecto humano como separado do corpo e divino em seu estudo da metafísica. Seria muito difícil esperar algo diferente antes da era da tecnologia? De qualquer forma, muitas religiões ou religiosos seguiram esse paradigma, incluindo inclusive uma relação de respeito entre Deus e o livre-arbítrio do homem.

O estranho desse respeito é que se o livre-arbítrio é verdadeiro, só Deus a respeita, pois, de acordo com as mesmas crenças, outros seres, ou pior, criaturas, não obedecem qualquer ética para interferir a mente ou vontade humana. Exemplo disso são crenças como obssessão ou possessão em que respectivamente um demônio ou espírito assume o comando do corpo de outro ser (animal ou humano). Há também técnicas como hipnose que reprogramam a mente humana. Enfim, "só Deus não sabe", "por amor".

Parece que, exceto Deus, já existem seres dominando a tecnologia da mente humana há muito tempo, porque talvez, e apenas talvez, eles já "descobriram" que o cérebro é um computador quântico (frase cunhada pelo físico David Deutsch em 1992). Aliás, a neurociência não anda sozinha, pois há também os campos de estudo envolvendo redes neurais, computação quântica, inteligência artificial, entre outros.


O que aconteceria, então, se a(s) causa(s) de nossa vontade ou de nossas ações fossem conhecidas? Se a ciência pudesse ver tudo isso numa atividade cerebral? Seríamos menos livres? Seria o fim do livre-arbítrio ou da privacidade? Como veríamos o perdão depois de saber as causas dos males praticados pelo perdoado? E a continuidade da vida após a morte?

Quanto à questão da liberdade humana, há colocações tanto de cristãos como de ateus, conhecidas ou julgados como deterministas, até de forma pejorativa, em que o mal não é menos perdoável porque suas causas são conhecidas. Nesse sentido, André Comte-Sponville [1] diz:
"quer o mau tenha escolhido livremente sê-lo, quer tenha se tornado mau necessariamente (devido ao seu corpo, à sua infância, à sua educação, à sua história…), não é menos mau por isso, em todo caso é responsável por seus atos, pois agiu voluntariamente".
Aliás, ele relembra antes: "Desculpa-se o ignorante, mas perdoa-se o mau", pois o "mal está na vontade, não na ignorância", contrário ao intelecto socrático do qual o mal não passa de um erro. Esse pensamento de Sócrates (extraído por Platão) é o fundamento de muitas crenças e religiões de hoje.

Já na concepção cristã, há os chamados Reformadores (da Reforma Protestante) que retomaram o assunto da soberania de Deus, de conhecer todas as coisas, inclusive da liberdade humana sem com isso diminuir a sua responsabilidade pelos atos. Um bom livro, dentro da teologia reformada, é "A Soberania Banida" de R. K. McGregor Wright ou mesmo lendo um breve resumo dele. Nessa linha, é bom lembrar que para o apóstolo Paulo tal assunto nunca foi tão problemático e influenciado como hoje: "Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim?" (Romanos 9:20).

O ponto não é tanto entender essa questão, mas saber que quando a próxima revolução científica acontecer, não será uma novidade o mito do livre-arbítrio no campo do pensamento.

Quanto à questão do corpo, a ideia de algo físico ou material ser o "local" da vontade ou do intelecto do homem parece ser um paradigma ou absurdo, pois muitos credos foram (talvez) enraizados em filosofias antigas, ausentes de qualquer conhecimento tecnológico a respeito do ser humano. Ou é até mesmo o pensamento natural (porém simplório) pela observação das coisas, principalmente de "fenômenos sobrenaturais". Nesse sentido, muitas crenças se popularizaram em torno da ideia do corpo ou da matéria como sendo algo ruim, "pesado", descartável, secundário, que não identifica a pessoa ou seu ser.

Por isso, é certo o relato de Paulo Brabo quanto a esse paradigma do "corpo mal", inclusive de interpretações bíblicas:
"O paradoxo, claro, está em que por milênios os cristãos têm se ocupado em salvar as suas almas e em desembaraçar-se de seus corpos, quando a Bíblia dá a entender de muitas maneiras de que na verdade nós somos os nossos corpos, e de que o espaço da vida eterna, longe de representar uma oportunidade para nos livrarmos finalmente do corpo, deve ser ocasião para abraçarmos o corpo em sua plenitude, e em regime definitivo. Para a Bíblia o corpo estará conosco para sempre, porque ele no fim das contas é o que somos."
Ora, o que faz um corpo diferente do outro? Um órgão do corpo diferente do outro? Um ter determinada característica ou finalidade diferente de outro? O que faz um escutar, outro, sentir, outro andar ou voar? Um sistema de células, basicamente. Como serão as células dos anjos, dos demônios, das algas vivas, dos homens, dos animais ou dos vegetais? Já ouviu falar em nanotecnologia?

Apenas como exercício para a imaginação, veja o filme "O Homem Bicentenário", em que mostra a trajetória de um robô em busca da liberdade e da aceitação como ser humano:


Como eram as células dele? Mesmo antigamente, o apóstolo Paulo diria ser um tipo de "carne": "Nem toda a carne é uma mesma carne, mas uma é a carne dos homens, e outra a carne dos animais, e outra a dos peixes e outra a das aves. E há corpos celestes e corpos terrestres" (1 Coríntios 15:39-40).

Falando em céluas, veja o vídeo abaixo sobre as "máquinas biológicas":



Três indagações, até agora:
  • E a continuidade da vida após a morte?
  • Como é o "corpo" de Deus?
  • E os fenômenos ou experiências sobrenaturais?
Dicas:
  • O que é cientificidade?
  • O que é existir?

Continua...

Referências

[1] André Comte-Sponville. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes.

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