Um pouco sobre retórica



A retórica, diferente do que muitos acham, é universal, humana e boa. A sua força marcante nos paradigmas é, na verdade, um exemplo de sua atuação, nem sempre tão clara, no conhecimento humano. Porém engana-se quem a entende como um instrumento de manipulação ou imoralidade. 

E é assim, com um estudo histórico, desde Aristóteles aos dias de hoje, que Olivier Reboul, em sua obra “Introdução à retórica”, busca desconstruir esse engano (Reboul, 2004).

Para entender a retórica, ou melhor, antes o seu papel indispensável no desenvolvimento humano, é preciso perceber o mundo em que vivemos: um “mundo de incertezas e conflitos”, “em que a verdade não é dada e talvez jamais seja alcançada senão sob a forma de verossimilhança”, “enquanto não tivermos chegado à ciência total” (Reboul, 2004, pp. 27, 39, 41).
“Mas vivemos em um mundo que não é o da pura ciência; em um mundo que não é um jogo, mas que nem por isso está submetido ao cego acaso. Mundo onde a previsão é mais ou menos provável, onde a decisão é mais ou menos justa. Mundo onde, embora possamos “refutar no real”, com uma certeza demonstrativa, devemos nos contentar com provais mais ou menos convincentes, com opções mais ou menos razoáveis” (Reboul, 2004, pp. 40, 41).
Assim o verossímil é uma confiança presumida, geralmente implícita no discurso, como uma premissa maior, que se admite até prova em contrário.

Os valores também são dessa maneira. Ora, não há provas (do valor) de que os juízes sejam honestos e competentes, porém se admite como se fossem, cabendo a quem discordar, o ônus da prova (Reboul, 2004, pp. 95, 165). A própria Administração Pública brasileira é exercida com esse princípio.

Contudo o discurso, na retórica, apresenta “certa unidade de sentido”, diferente, por exemplo, do enunciado incoerente de um bêbado, e também deve visar o convencimento, não sendo, então, algo como contos ou comédia, mas como tratados de filosofia ou de teologia, sermão, propaganda entre outros (Reboul, 2004, p. XIV).

Nesse sentido, o discurso persuasivo apresenta, numa espécie de “acordo prévio” com o público, elementos implícitos ou explícitos, “premissas comuns”, envolvendo presunções, fatos (que são contestáveis), verdades, como nexos necessários ou prováveis, e valores (Reboul, 2004, p. 165).

Logo a retórica não ignora ou aceita somente demonstrações nem abraça o relativismo. Aliás, sobre este último:
“Mas essa “constatação” é errônea, pois repousa num jogo etimológico de palavras. De fato, a verossimilhança não está ligada ao auditório (...). O verossímil não decorre de ignorância, incompetência ou preconceitos do auditório, mas do próprio objeto. Quando se trata de questões jurídicas, econômicas, políticas, pedagógicas, talvez também éticas e filosóficas, não se lida com o verdadeiro ou falso, mas com o mais ou menos verossímil. Inversamente, num mundo onde tudo fosse cientificamente certo, já não seria possível argumentar, nem... agir. Em suma, a argumentação não deve resignar-se ao verossímil como se ele fosse filosofia de pobre, mas deve respeitá-lo como inerente a seu objeto e não ter pretensões a um cientificismo que não passaria de engodo, que na verdade seria anticientífico” (Reboul, 2004, p. 95).
A retórica, então, estaria no “domínio da argumentação”, “entre a demonstração científica ou lógica e a ignorância pura e simples”; “que fica a meia distância entre a evidência e a ignorância, entre necessário e o arbitrário”.


Natureza
Modalidade
Atuação
Demonstração
Saber
Necessária
Lógica, ciências exatas e naturais.
Dialética [1]
Jogo, exercício
Provável
Ciências humanas, filosofia, teologia...
Retórica
Convencer
Verossímil
Idem, mais pregação, propaganda...
Sofística
Dominar
Falsa-aparência
Idem

A retórica, na verdade, é a arte disciplinada “de persuadir pelo discurso”, por meio de elementos racionais e afetivos, bem como argumentativos e oratórios, sem força, sem interesse vil, de modo a levar alguém a crer (Reboul, 2004, pp. XV-XVII).

Contudo o autor não está querendo concluir que “a ausência de demonstração significasse não-saber”, pois “não haveria ciências humanas”. Inclusive estas se diferenciam das “ciências “duras”” pela ordem com que geram conhecimento (Reboul, 2004, p. 91), pois, citando Kelsen, “entre as mencionadas ciências sociais e as ciências naturais é, em todo caso, uma distinção apenas de grau e não de princípio” (Kelsen, 1998, p. 96).

Aliás, o autor pondera que a demonstração científica “não é tão pura e rigorosa” assim, pois no “próprio cerne das ciências exatas encontram-se controvérsias em que ambas as partes têm o desejo de convencer”, “na qual intervém também outros critérios além da validade lógica, como, por exemplo, a falsificação de Karl Popper(Reboul, 2004, p. 98), e a história das ciências, pela ótica do paradigma científico de Thomas Kuhn, fortalece mais ainda uma dinâmica dessas controvérsias (Kuhn, 2003).

Como arte disciplinada, a retórica obedece a regras próprias, não sendo, então, apenas uma “simples técnica”, mas uma ferramenta que permite ao orador ser um artista “no sentido de descobrir argumentos ainda mais eficazes do que se esperava” (Reboul, 2004, p. XVI).

Dessa forma, retórica não é sofismo, “cuja validade é apenas aparente e que ganha adesão por fazer crer em sua lógica”, “para legitimar interesses, amor-próprio e paixões”, pois é “pela forma que um raciocínio é sofístico, e não por seu conteúdo”. Logo, “se uma argumentação é mais ou menos desonesta, não é porque seja mais ou menos retórica” (Reboul, 2004, pp. 99, 100).

Um exemplo típico de sofismo é “dizer mais do que sabe”, isto é, extrapolar ou abusar da demonstração na argumentação, tomando uma premissa, geralmente implícita, como verdadeira, quando é desmentida pelos fatos (Reboul, 2004, pp. 100-102).

O paradigma científico do Evolucionismo, por exemplo, está vivendo uma crise frente ao crescimento da TDI (Teoria do Design Inteligente), por causa não apenas da falta de evidências, mas da presença de evidências científicas que falsificam aquela teoria (Eberlin, 2010).

Por usar elementos afetivos e não apenas racionais, a retórica reconhece o ser humano como uma criatura racionalmente limitada, não negando a realidade da vida.


Desse modo, ela não é indisciplinada e vil como o sofismo, nem direta e tão evidente como a demonstração matemática, porém, acima de tudo, útil à sociedade e ao conhecimento humano, porque, além de persuasiva, é pedagógica, hermenêutica e heurística (Reboul, 2004, pp. XVII-XXII).
Exemplo dessa função persuasiva é a ética do judiciário, que não é ecumênica, pois não se busca a anuência do réu, como se fosse necessário convencê-lo de seu erro para então condená-lo, mas se procura persuadir um terceiro: o tribunal (Reboul, 2004, p. 106).

Já a pedagogia utiliza-se da retórica, até em detrimento do discurso científico, para ensinar com eficiência (Reboul, 2004, p. 105).

Além disso, não há discurso se não for contra ou a favor de outros discursos, nesse sentido, é preciso entender, ou melhor, interpretar adequadamente a força ou fraqueza da retórica do opositor. E a hermenêutica é “a arte de interpretar textos” (Reboul, 2004, p. XIX).

E, por fim, a retórica ajuda a descobrir, pois “contribui – onde não há uma decisão previamente escrita – para inventar uma solução”, por meio de “um debate contraditório, só possível graças a seus “procedimentos”, sem os quais logo descambaríamos para o tumulto e a violência”, porque “vivemos num mundo que não condiz inteiramente com o conhecimento científico, um mundo em que a verdade raramente é evidente, e a previsão segura raramente possível” (Reboul, 2004, pp. XX, XXI).

[1] Por questões de simplificação, a dialética será usada como sinônimo da retórica, por causa das semelhanças, apesar do Olivier deixar bem clara, em seu livro, a distinção e relação entre elas (Reboul, 2004, pp. 27-41).

Referências

Eberlin, M. N. (2010). Fomos Planejados: A maior descoberta de todos os tempos. Acesso em 15 de 12 de 2012, disponível em Fomos Planejados: http://www.fomosplanejados.com.br

Kelsen, H. (1998). Teoria Pura do Direito (6 ed.). São Paulo: Martins Fontes.


Kuhn, T. S. (2003). A Estrutura das Revoluções Científicas (7 ed.). São Paulo: Perspectiva.


Reboul, O. (2004). Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes.

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