Tradução do grego e comentários de 1 Coríntios 15:35 e Lucas 23:42-43


Seguem traduções e comentários de algumas passagens bíblicas a partir do grego.

1 Coríntios 15:35

No grego, 1 Coríntios 15:35 é:
"Ἀλλὰ ἐρεῖ τις Πῶς ἐγείρονται οἱ νεκροί, ποίῳ δὲ σώματι ἔρχονται;".

A tradução corrente é:
"Mas alguém dirá: Como ressuscitarão os mortos? E com que corpo virão?".

No entanto, traduzindo, cheguei a: "Mas alguém questiona: Como os cadáveres despertam, chegam em que tipo de corpo?".

Perceba, nessa minha tradução, a dificuldade que o interlocutor está colocando: uma dificuldade aparentemente sem solução. Algo assim: "como é possível conceber que corpos necrosados, ou sem pernas, ou sem mãos, ou sem cabeça, ou só pó, possam voltar a ser como antes? Exceto se for algum tipo de corpo especial, mas qual é?".

Essa dificuldade, contudo, praticamente desaparece com aquela tradução corrente, diminuindo assim o melhor sentido do versículo, e o problema colocado pelo interlocutor em torno da questão do corpo. Aliás, sem essa dificuldade, a tradução corrente direciona para um outro entendimento, estranho ao contexto original, especialmente com a noção da alma, em que os "mortos" poderiam ser as almas que retornarão em algum corpo especial.

A provável razão para essa tradução corrente seja a influência da noção de alma, como se a pessoa fosse a alma, e o corpo fosse uma carcaça (crenças órficas > platonismo > parte do cristianismo etc). Porém o autor bíblico não respondeu com essa noção de alma, que lhe era familiar, pois o ponto não era esse.

Quanto ao grego original não há omissões:
"αλλ ερει τις πως εγειρονται οι νεκροι ποιω δε σωματι ερχονται".

Lucas 23:42,43


A passagem de Lucas 23:42,43 pela tradução corrente é:
"E disse a Jesus: Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino. E disse-lhe Jesus: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso".

No grego moderno (com pontuações) essa passagem é:
"καὶ ἔλεγεν Ἰησοῦ, μνήσθητί μου ὅταν ἔλθῃς εἰς τὴν βασιλείαν σου. καὶ εἶπεν αὐτῷ Ἀμήν σοι λέγω, σήμερον μετ᾽ ἐμοῦ ἔσῃ ἐν τῷ παραδείσῳ".

Minha tradução dessa passagem é:
"E [o ladrão] disse a Jesus: lembra de mim (menciona me) assim que chegues [para si] no reino de ti. E disse a si mesmo [quanto ao lembrar ou mencionar o ladrão]: Certamente, para tu, digo: hoje comigo [bem próximo] [tu ladrão] somarás ao jardim [desse reino]".

Uma vez o ladrão reconhecendo Jesus como rei, e como todo rei era também conhecido como juiz, a quem era dada a palavra final, em questões de justiça, então o ladrão não estava preocupado com a falta de memória de Jesus, mas num evento de julgamento (daí o aspecto aoristo do verbo lembrar), o qual é conhecido geralmente na forma de pronunciamento público (daí condicionado à chegada do reino), por isso poderia também ser admitido o sentido de ser mencionado em tal evento em vez de ser meramente lembrado. Esse sentido de mencionado também está presente na Odisseia de Homero (7.192) com esse verbo.

O ladrão também expressa o desejo de que provavelmente (daí o subjuntivo) aconteceria o evento (daí o aoristo) da chegada do reino de Jesus. E esse chegar exatamente está alinhado com outras situações em que Jesus afirma que o “reino de Deus está próximo” ou que “é chegado o reino dos céus”.

Então o autor da passagem se refere à resposta de Jesus, no aoristo indicativo (“disse”), logo referente ao evento de lembrar ou mencionar o ladrão quanto à chegada do reino.

Mas a resposta de Jesus supera o desejo do ladrão, primeiro colocando como algo acontecendo no presente, e com a ênfase de quem tem a certeza do que está acontecendo, por isso a presença do advérbio “certamente” e o verbo “digo” no indicativo. Segundo, supera quando “lembra” ou menciona a respeito do ladrão, dando a palavra final, já como rei, da situação dele: mais um que se somará ao jardim desse reino. Essa palavra traduzida como “jardim” era usada para se referenciar a um lugar prazeroso do reino visitado por nobres e realeza. Assim o ladrão morreu (provavelmente em paz) sabendo sua situação final no reino por causa da menção pública do próprio rei.

Desse modo, perceba que pela tradução corrente, parece que a tranquilidade é dada ao ladrão em função de saber (a localização, por conseguinte a situação) para aonde sua alma iria depois de morrer. Note que a tradição posterior modificou o sentido poético ou a analogia ao “jardim” (paradéisos), com a doutrina do Paraíso, basicamente um lugar privilegiado das almas dos mortos ou definitivo após ressurreição final dos mortos.

Contudo, a palavra traduzida como “hoje”, na posição em que se encontra na oração, parece não se encaixar claramente, porque se for entendido como o dia corrente, então o “jardim” seria um local dos mortos, pois naquele mesmo dia Jesus também morreu, porém ressuscitou dias depois. Mas se é dos mortos então o reino que está próximo ou é o reino dos mortos ou é outro reino. Além disso, nesse “jardim temporário”, em que está o ladrão, Jesus ficou por alguns dias, na qual as almas dos outros mortos continuam até ressurreição de seus corpos (vide comentários de 1 Coríntios 15.35).

Na verdade, é preciso analisar o grego original com mais cuidado, porque há omissões e mudanças de palavras, no grego moderno, diferente do que aconteceu com a passagem de 1 Coríntios 15:35.

No grego original temos:
"και ελεγεν τω ιησου μνησθητι μου κυριε οταν ελθης εν τη βασιλεια σου και ειπεν αυτω ο ιησους αμην λεγω σοι σημερον μετ εμου εση εν τω παραδεισω"

Com pontuações nas palavras sem omissões e sugestões de pontuações nas orações temos:
"καὶ ἔλεγεν τῷ Ἰησοῦ[,] μνήσθητί μου κύριε ὅταν ἔλθῃς εν τη βασιλείαν σου[.] καὶ εἶπεν αὐτῷ ο Ἰησοῦς Ἀμήν λέγω σοι σημερον[,] μετ᾽ ἐμοῦ ἔσῃ ἐν τῷ παραδείσῳ".

["καὶ ἔλεγεν Ἰησοῦ, μνήσθητί μου ὅταν ἔλθῃς εἰς τὴν βασιλείαν σου. καὶ εἶπεν αὐτῷ Ἀμήν σοι λέγω, σήμερον μετ᾽ ἐμοῦ ἔσῃ ἐν τῷ παραδείσῳ"]

Nesse grego moderno, quatro palavras foram omitidas (τῷ, κύριε, ο Ἰησοῦς), modificada a ordem de duas (“σοι λέγω” em vez de “λέγω σοι”), duas foram alteradas (“εἰς τὴν” em vez de “εν τη”) e uma vírgula colocada antes de “σήμερον” e não depois.

Agora a tradução com um grego moderno adequado é:
"E [o ladrão] disse para Jesus: lembra de mim (menciona me), senhor, assim que chegues [para si], na tua realeza. E disse a si mesmo Jesus [quanto ao lembrar ou mencionar o ladrão]: Certamente, digo para tu hoje: comigo [bem próximo] [tu ladrão] somarás ao jardim [desse reino]".

Portanto, Jesus tendo “lembrado” do ladrão (dada a palavra final como rei), naquele mesmo dia, e não em algum evento provável, evidenciou o modo verbal desse dito (“certamente” ou “em verdade”), além de ter sido algo alinhado ao que já dizia antes quanto ao reino de Deus próximo ou chegado. Nesse contexto, a passagem não trata, de forma nenhuma, de um destino das almas.

(Após um primeiro semestre do curso de extensão do Grego na UFPB, essas são algumas aplicações, mas ainda falta o segundo semestre)

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