O ponto holístico da geometria


Enquanto revisando algumas ferramentas matemáticas, para o estudo da teoria da recursão, pelo livro "Languages and Machines" (1996, p. 20, 21) de Thomas A. Sudkamp, ao me deparar com a definição recursiva, percebi bem mais claramente a abordagem da análise uso-significado de Robert Brandom, na qual uma relação semântica interposta pragmaticamente (um metavocabulário pragmático) é uma aplicação da definição recursiva.

Baseado em Sudkamp, uma definição recursiva especifica (!) um método para construir os elementos de um conjunto, pelo uso de dois componentes: a base e um conjunto de operações. Assim, por exemplo, para construir o conjunto dos números naturais (N), basta "ter" a base zero e a operação sucessor. Desse modo, N = {0, s(0), s(s(0)), ...}, que abreviado fica N = {0, 1, 2, ...}.

O primeiro componente (a base), da definição recursiva, em Brandom, é um metavocabulário pragmático (V'), e o outro componente é o conjunto de práticas ou habilidades (P), cujo exercício conta como implementando um vocabulário específico (V). Em outras palavras, o metavocabulário pragmático diz o que é (V') preciso para ou deve fazer (P) o que é dizer algo específico (V). É assim que enxergamos relações de fazer algo (pragmático) com significado de dizer algo (semântico).

Contudo Sudkamp, assim como muitos outros, utiliza o paradigma composicional ou por composição. Veja que de um conjunto finito ou "mais simples" é possível produzir um conjunto infinitamente complexo, conforme visto com os naturais. De fato, está na essência do procedimento recursivo, conforme diz Sudkamp definir processos ou estruturas em termos de instâncias mais simples do mesmo processo ou estrutura, e que no caso dos naturais, "mais simples" significa menor, como no caso do zero. Mas o zero é a base num paradigma por incompatibilidade?

Essa questão de haver não só o paradigma composicional remete a uma crítica de Brandom a outros, como Jerry Fodor e Ernie Lepore, que defendem que a semântica formal é (tem a restrição de ser) composicional. Assim definem a composicionalidade: "a propriedade que um sistema de representações tem quando (i) contém ambos símbolos primitivos e símbolos que são sintática e semanticamente complexos; e (ii) o último é herdado de propriedades sintáticas/semânticas do primeiro" (tradução minha). Para Brandom, porém, essa restrição é uma falácia, pois há também a semântica holística por incompatibilidade, em cuja base está a ideia de que "o conteúdo conceitual, expressado por cada uma das sentenças, é representado pelo conjunto de sentenças com as quais é materialmente incompatível" (tradução minha).

A introdução de uma semântica holística pode oferecer uma grande luz à definição euclidiana de ponto, que para muitos, talvez acostumados com o paradigma composicional, acham estranho dizer que o princípio da geometria (o ponto) "é o que não tem partes" (de nenhum). No entanto, isso não seria nada estranho para um paradigma por incompatibilidade, se fosse possível pensar analogamente o zero como "o que é não sucessor" (de nenhum). 

Esquematicamente:
1. No paradigma composicional: V' = {0, s} => P = {0, s(0), s(s(0)), ...}    => V = {0, 1, 2, ...}
2. No paradigma holístico:           V' = {~, s} => P = {~s, s(~s), s(s(~s)), ...} => V = {0, 1, 2, ...}

(Thomas A. Sudkamp. Languages and Machines. 1996)
(Robert Brandom. Between Saying and Doing: Towards an Analytic Pragmatism. 2007)
(Robert Brandom. Reply to Jerry Fodor and Ernest Lepore’s “Brandom Beleaguered”. In: Reading Brandom: On Making It Explicit. 2010)

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