Dominando o "poder de Deus"!


É muito comum a falta de maturidade (espiritual) entre jovens evangélicos. Uma das razões desse comportamento pode ser encontrada numa interpretação equivocada da passagem I Coríntios 2.1-5:

“E eu, irmãos, quando fui ter convosco, anunciando-vos o testemunho de Deus, não fui com sublimidade de palavras ou de sabedoria. Porque nada me propus saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucificado. E eu estive convosco em fraqueza, e em temor, e em grande tremor. A minha linguagem e a minha pregação não consistiram em palavras persuasivas de sabedoria, mas em demonstração do Espírito de poder; para que a vossa fé não se apoiasse na sabedoria dos homens, mas no poder de Deus”.

Qual a sua conclusão imediata após ler esse texto? Que a fé deve se basear no “poder de Deus” para não se deixar levar pela “sabedoria dos homens"? Em outras palavras, é preciso deixar de estudar certas ciências como a filosofia, sociologia, psicologia, lógica, administração, teologia para não se deixar levar por elas e perder a fé? Evitar escolher tais cursos no vestibular? Evitar hermenêutica ou qualquer outro livro para entender e explicar passagens bíblicas e ser levado pelo Espírito? Curas, milagres ou experiências sobrenaturais são sinais do "poder de Deus" numa pregação?

Essas perguntas resumem o seguinte pensamento bem comum no meio evangélico: quanto maior a experiência sobrenatural, menor a necessidade de conhecimento (secular) e maior a intimidade com Deus. Esse caminho geralmente é sem volta para muitos antes de sair da linha da sanidade.

Então muito líderes, nesse raciocínio, recomendam aos mais novos, jovens e adolescentes, evitarem o aprofundamento ou até o mesmo o contato com tais conhecimentos "do mundo", principalmente os lugares de sua produção, faculdades, universidades, amizades. (Já estive numa igreja ouvindo tal "recomendação"!)

E aí? E o texto citado? Está errado? De forma nenhuma. É preciso pensar um pouco e aplicar regras simples de hermenêutica: interpretar segundo o contexto. Esse mesmo problema já afetou muitas igrejas em outro tema: justificado pelas obras e não somente pela fé.

O problema de uma interpretação isolada, muitas vezes, é o sentido das palavras próximo à realidade do leitor e não do autor do texto. Quando, por exemplo, alguém quando lê “poder de Deus” logo imagina algo sobrenatural, trovão, nuvens carregadas, o céu, raios, luz etc.

No primeiro capítulo de I Coríntios, Paulo fala de “sabedoria de palavra” (1.17) como sendo a “sabedoria dos sábios” e a “inteligência dos instruídos” (1.19), que é a “sabedoria do mundo” (1.20) que Deus tornou louca. Então quer dizer que qualquer sabedoria de palavra, de sábio, de instruído (aprofundado) é uma alusão à "sabedoria do mundo", contra a cruz de Cristo? Devemos entender assim? Não, porque Paulo enriqueceu os coríntios em "toda a palavra e em todo o conhecimento" (1.5) e ele estaria então atacando a si mesmo. 

Paulo ensinou na verdade toda uma sabedoria que é “loucura aos que se perdem” (1.18) e “poder de Deus” (1.18) para quem é salvo (ver também Romanos 1.16). Ele ensinou a “palavra da cruz” (1.18), o evangelho (1.17) ou a sabedoria de Deus (1.21), que é o único instrumento de salvação do pecador. Por isso Deus tornou louca a sabedoria do mundo porque ela não seria capaz de salvar o homem (1.21 e ver também Romanos 10.14).

Mas então quais são os sábios, os instruídos ou o mundo que Paulo está atacando? São os judeus que pediam sinais e os gregos que buscavam sabedoria (1.22). 

Portanto o sentido de “poder de Deus” para Paulo nesse capítulo era o evangelho e seria uma contradição se fosse manifestação ou experiência sobrenatural já que ele estava atacando a idéia dos judeus de que a sabedoria só tem respaldo com sinais. Exatamente para muitos evangélicos hoje é considerado "frio" ou sem respaldo líderes sem milagres em seus pregações.

No segundo capítulo de I Coríntios, Paulo ataca a “ostentação de linguagem ou de sabedoria” (2.1) e a “linguagem persuasiva de sabedoria” (2.4) como maneiras de respaldar sua pregação e as contrasta respectivamente com a sabedoria de “Jesus Cristo e este crucificado” (2.2) e a “demonstração do Espírito e de poder” (2.4), para que a fé não se apoiasse “em sabedoria humana, e sim no poder de Deus” (2.5). Dessa forma, Paulo quando fala das expressões “demonstração do Espírito” e “poder de Deus” faz alusão a alguma experiência sobrenatural?

A expressão “demonstração do Espírito” faz alusão à ação do Espírito Santo revelar ao pecador o evangelho (2.10, 11), porque se não fosse uma obra exclusiva do Espírito então qualquer homem, principalmente os “poderosos desta época” (2.6), teriam a capacidade de ouvir e ver (2.9) a “sabedoria de Deus em mistério, outrora oculta” (2.7) – o evangelho oculto na época da lei – e jamais “teriam crucificado o Senhor da glória” (2.8). Na verdade esses poderosos são os israelitas que crucificaram a Cristo (ver também Atos 2.22, 23).

E por ser uma obra exclusiva do Espírito, a revelação do evangelho ao coração do pecador (ver também Mateus 2.11; 16.13-17; Gálatas 1.15-16), confirma a eleição de Deus (1.26-28): “reparai, pois, na vossa vocação”. Só os escolhidos por Deus podem entender realmente ou reconhecer o evangelho como único instrumento de salvação. 

Essa verdade quando compreendida faz com que “ninguém se vanglorie na presença de Deus” (1.29, 31). Aliás, só através dessa “demonstração do Espírito”, o pecador pode conhecer “o que por Deus nos foi dado gratuitamente” (2.12) de modo a conferir “coisas espirituais com espirituais” (2.13).

Portanto, o “homem natural” (incrédulo) não pode aceitar e entender o evangelho (2.14, 15) porque não tem a “mente de Cristo” (2.16).

A aceitação ou entendimento do evangelho não é um problema intelectual – como se faltasse uma explicação melhor ou mais aprofundada – e sim espiritual. Quem tem o entendimento salvífico do evangelho domina o "poder de Deus".

Referências

1. SANTOS, Valdeci dos. O "Crente Carnal" à Luz do ensino de John Owen sobre a Mortificação. Artigo eletrônico da Internet.

2. LOPES, Augustus Nicodemus. Paulo e os "Espirituais" de Corinto. Artigo eletrônico da Internet.

3. SELPH, Robert B. Os Batistas e a Doutrina da Eleição. São José dos Campos: Fiel, 1995, p. 104.

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