A Essência da Justificação pela Fé Somente


Esta é uma continuação de "A Razão da Justificação pela Fé Somente". Aqui terminamos nossa caminhada de descobertas através do conhecimento da justificação pela fé somente, um dos pilares da doutrina cristã.

Temos uma dívida impagável pelos nossos próprios esforços para com Deus por causa de nossa imperfeição. Não temos “dinheiro” suficiente para pagar a dívida e mesmo com todos os nossos próprios esforços nunca conseguiríamos tal “dinheiro”.

A única solução é alguém pagar a nossa dívida de forma perfeita. Não apenas isto! Mas também não voltarmos a cometer mais qualquer erro. Ora, sabemos que a dívida é conseqüência e não causa do problema. Por isso, além de pagarmos a dívida devemos ter a certeza de que não a teremos novamente, pois caso contrário, de nada adiantará pagar uma dívida com a possibilidade de que venhamos a ter novamente – e no nosso caso é certo que a teremos de novo porque ainda continuamos sendo imperfeitos mesmo com a dívida paga e, portanto não vai demorar muito para pecarmos. Logo temos dois aspectos que precisamos resolver: o positivo (pagar a dívida) e o negativo (não contrair mais dívida). Como podemos resolver esse dilema?

Por meio da imputação – mesmo conceito utilizado no contexto forense, legal – poderíamos resolver esse dilema. Isto é, alguém poderia pagar não só a nossa dívida, mas cumprir para nós a lei perfeitamente. Mas nem todos entendem dessa forma e a Reforma Protestante surgiu para resgatar também essa verdade. Por isso será importante falar das concepções católico-romana e protestante a respeito da justificação pela fé.

Dizer que Roma ensina a justificação pelas obras não é bem verdade. No Concílio de Trento afirmou que a fé era o começo, o alicerce e a raiz da justificação: “a fé é o começo da salvação, o fundamento e raiz de toda justificação, sem a qual é impossível agradar a Deus”. Mas não só isso. Roma também ensinou que a graça era infundida no coração do pecador para que este manifestasse essa fé. E junto com a santificação e com as boas obras conseguiria nesta vida ou no purgatório a aceitação de Deus ou a justificação.

Note o caráter merecedor nesse conceito de graça infundida. Em outras palavras, as virtudes de Cristo infundidas no coração do pecador o permitem inerentemente se tornar um justo diante de Deus.

Certa vez ouvi de um pastor batista em João Pessoa algo que na verdade resumia bem a concepção católico-romana (mesmo sem ele saber): “Com a fé se conquista a salvação e com a santificação se garante a salvação”. Ora, para Roma Deus apenas nos dá graciosamente as ferramentas para merecermos, conseguirmos, alcançarmos, conquistarmos a justificação e, por conseguinte, a nos sustentar, garantindo a salvação.

Segue um comparativo para melhor entender as diferenças entre essas concepções e a importância da palavra "Somente":

Católico-Romano
Protestante
1. A justiça que nos justifica é a que vem de dentro de nós: justiça inerente.
1. A justiça que nos justifica é a de outro: justiça imputada.
2. Essa justiça é desenvolvida por nós (pelo menos durante a vida): justificação por processo.
2. Essa justiça foi desenvolvida por Jesus Cristo: justificação por ato.
3. Essa justiça que desenvolvemos dentro de nós recebe a ajuda da graça: pecador tornado justo.
3. Essa justiça de Cristo é imputada por causa da graça: pecador declarado justo.
4. Um pecador não pode ser justificado, deve ser antes justo para ser justificado: declaração analítica.
4. Por causa da imputação o pecador pode ser declarado justo: declaração sintética. Ao mesmo tempo pecador e justo.
5. A fé para justificar deve conter qualidades, principalmente o amor, infundidas pelo Espírito Santo: fé como obra.
5. A fé não deve ter qualquer qualidade: fé como ato.
6. A fé participa do início da justificação, e depois as boas obras vindas da graça junto com os sacramentos garantem o processo de justificação.
6. O início e fim da justificação são mediante a fé somente. Mas a própria fé é justificada pelas obras, isto é, após a justificação as boas obras devem existir apenas para confirmar a fé como verdadeira. Assim o pecador é justificado pela fé somente e a fé é justificada pelas obras.
7. Santificação participa do processo de justificação. O status do pecador só muda se mudar a natureza desse pecador – se tornando justo com a santificação. Logo, justificação não é apenas uma questão forense.
7. Santificação não participa do ato de justificação, mas ocorre depois. O status do pecador muda apenas com a justificação e a sua natureza apenas muda a partir da regeneração e se aperfeiçoa com a santificação. Logo, justificação é estritamente uma questão forense, mas num sentido amplo é sempre acompanhada da regeneração, isto é, o pecador justo não é (vive) mais o mesmo pecador de antes, pois sua natureza é transformada de forma a querer viver para Deus.

Qual concepção tem maior embasamento bíblico?

Em relação ao primeiro ponto, estes versículos podem ajudar: “Ora, ao que trabalha, o salário não é considerado como favor, e sim como dívida. Mas, ao que não trabalha, porém crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é atribuída como justiça” (Romanos 4.4-5); “não tendo justiça própria, que procede de lei, senão a que é mediante a fé em Cristo, a justiça que procede de Deus, baseada na fé” (Filipensses 3.8,9).

A justificação por meio da imputação da justiça inerente de Cristo contém dois aspectos: negativo e positivo, resumidos da seguinte forma: Cristo precisou morrer no lugar do pecador para pagar por seus pecados e precisou viver perfeitamente a lei no lugar do pecador para que este tivesse uma justiça perfeita diante de Deus. O pecador, por imputação, teve sua dívida paga e cumpriu perfeitamente a lei. A justiça infundida encontra um problema em relação ao sacrifício de Jesus. Isso porque se os pecados fossem infundidos em Cristo, este se tornaria inerentemente mal e não poderia pagar nem pelos os próprios pecados. Assim foram imputados a Cristo os resultados dos pecados (a dívida e a impossibilidade de cumprir perfeitamente a lei) daqueles que foram justificados pela fé.

A justificação não pode ser um processo porque a justiça do pecador, por imputação (um ato), é a justiça perfeita de Cristo. Por isso encontramos nas Escrituras que ao ser justificado o pecador já não entra mais em condenação ou em juízo, conforme estes versículos: “Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus. Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte” (Romanos 8.1,2); “Em verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida” (João 5.24).

O terceiro e quarto ponto pode ser resumido pela expressão “Justo e Justificador” em Romanos 3.26: “para Ele mesmo ser Justo e o Justificador daquele que tem fé em Jesus”. Num mesmo ato Deus agiu com misericórdia e justiça.

Para o quinto ponto, a justificação não ocorre por causa da força, pureza, sinceridade ou qualquer qualidade na fé do pecador, porém por causa da graça da justiça de Cristo. Eis alguns versículos: “Justificados, pois mediante a fé, temos paz com Deus por meio do nosso Senhor Jesus Cristo; por intermédio de quem obtivemos igualmente acesso, pela fé, a esta graça na qual estamos firmes” (Romanos 5.1,2); “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé, e isto não vem de vós; é dom de Deus” (Efésios 2.8).

A fé do pecador justificado é um vaso vazio
Assim, a fé é um instrumento e não tem valor merecedor em si; é um vaso vazio e de barro. “Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus e não de nós” (2 Coríntios 4.7). É por causa da graça (favor imerecido) que a justiça de Cristo nos é imputada mediante a fé. A fé, portanto, não tem nenhuma condição meritória, porém instrumental ou lógica. A fé em si é vazia para a justificação, pois ela apenas recebe o que realmente tem valor: a justiça de Cristo.


Por isso Deus não pode responder a nossa fé, e sim usar a nossa fé como vaso para derramar a justiça de Cristo, pois a causa da justificação não é a fé do homem, mas a graça de Deus.

A justificação é pela graça somente porque a fé é um instrumento e não uma obra especial: “E, se é pela graça, já não pelas obras; do contrário, a graça já não é graça” (Romanos 11.6). Aliás, se a fé em si salvasse (ajudasse a salvar) então ela teria que ser perfeita para gerar uma salvação perfeita.

Muitos entendem o Salmos 51.17 como sendo Deus justificando o pecador quando a sua fé é acompanhada de um coração quebrantado, todavia lendo o versículo anterior descobrimos que o texto faz um contraste entre tipos de sacrifícios: “pois não te comprazes em sacrifícios; do contrário, eu tos daria; e não de agradas de holocaustos. Sacrifícios agradáveis a Deus são o espírito quebrantando; coração compungido e contrito não o desprezarás, ó Deus” (Salmos 51.16,17).

O início e fim da justificação são mediante a fé somente exatamente porque Cristo é o “Autor e Consumador” dessa fé: “olhando firmemente para o Autor e Consumador da fé, Jesus” (Hebreus 12.2). Novamente, o importante é o conteúdo do vaso e não o vaso. Por isso que Deus se agrada da fé do pecador como dito em Hebreus 11.6, porquanto é a justiça de Cristo que Deus “vê” em nossa fé em vez da nossa justiça própria.

E como é viver sendo um pecador justificado? Não importa se faço boas obras de agora em diante pois já estou justificado?
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1. A Marca da Vitalidade Espiritual da Igreja: Justificação Pela Fé Somente. Autores: RC Sproul; John Marcarthur, Jr; Joel Beeke; John Gerstner; John Armstrong. Editora: Cultura Cristã.

Comentários

Aislan Fernandes disse…
Texto revisado e corrigido.

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