Fale do evangelho aos cães, e de suas maravilhas aos porcos



Não se pode interpretar qualquer passagem bíblica sem aplicar adequadamente alguns princípios hermenêuticos básicos, principalmente quando há figuras de linguagem.

Exemplo disso é a interpretação do versículo Mateus 7:6: 
"Não deis aos cães as coisas santas, nem deiteis aos porcos as vossas pérolas, não aconteça que as pisem com os pés e, voltando-se, vos despedacem".
Quem são os "cães" e os "porcos"? O que são as "coisas santas" e as "pérolas"? Antes disso, é possível perceber "diretamente" (se literalmente) que esses "animais" não sabem distinguir o valor desses objetos, tratando-as, logo, com indiferença, por conseguinte, danificando-as naturalmente.

Mas são figuras de linguagem ou uma descrição literal? Se literal, não se está, pelo menos, dizendo algo óbvio, logo desnecessário num contexto bíblico (moral e espiritual)?

Primeiro, é perigoso usar o sentido em si de um animal como se fosse absoluto, pois serpente pode ser pejorativo ou construtivo dependendo do contexto. Vejam esses dois versículos:
  • "Eis que vos envio como ovelhas ao meio de lobos; portanto, sede prudentes como as serpentes e inofensivos como as pombas." (Mateus 10:16)
  • "Serpentes, raça de víboras! como escapareis da condenação do inferno?" (Mateus 23:33)

Esse versículo é, na verdade, uma metonímia, que "consiste em substituir uma palavra por outra. Quando dizemos que o Congresso tomou uma decisão, estamos referindo-nos a deputados e senadores", referente a confiança (ZUCK, p. 176, 188).

Portanto, se é confiança não é eficácia ou eficiência, como se comumente se vê por aí, e isso faz toda a diferença! Pois por muitos anos (sem procurar, na verdade, entender melhor essa passagem) ouvi de muitos que o sentido era algo assim: "É inútil querer levar alguém a converter-se ao Reino, contra a sua vontade. Será pura perda de tempo!".

Nunca é perda de tempo, em qualquer ação ou tempo, por mais insignificante ou inútil aos nossos olhos, quando está sob a atenção da Graça de Deus!

Aliás, com o passar dos anos, era cada vez mais comum, para mim, vê longas e maravilhosas transformações de vidas, envolvidas por certas "insistências do Evangelho". Em alguns momentos da vida dessas pessoas, parecia inútil falar algo, mostrar algo bíblico ou cristão, porém "lá na frente" fazia todo sentido, quando todas as peças estavam juntas.

A experiência me forçou a reler a passagem ou a perceber com mais atenção o que estava "óbvio hoje" (isso é um viés!).

Trata-se de confiança e não de eficácia evangelística! Cuidado então com os conselhos envolvendo essa passagem; não desista de ninguém; continue amando-a sempre, respeitando sempre os limites do relacionamento, da boa convivência, e reconhecendo, na prática, que você não é Deus!

A passagem então ficaria assim: 
"Fale do evangelho aos cães, e de suas maravilhas aos porcos, mas não confie a eles o ide e pregai a toda criatura, porque ainda não a conhecem suficientemente, e não aconteça que dêem prioridade a outras coisas, esquecendo-as e deixando de passá-las a outros" (Mateus 7:6, adaptado).

Outra conclusão implícita: todo cristão já foi um cão ou porco um dia.

Referências

ZUCK, Roy B. A Interpretação Bíblica - Meios de Descobrir a Verdade da Bíblia. ed. Vida Nova, 2009.

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