Entenda um pouco da revolução pela fé com alguns recursos hermenêuticos


Estava lendo um livro [1], de dois ateus, criticando a "ideia de que os desejos, as crenças, as expectativas e as intenções da mente humana de algum modo criam ou moldam a realidade que nos cerca", inclusive utilizando, como exemplo, que fortalece essa ideia, a "promessa de Jesus de que a fé move montanhas", com base no versículo de Marcos 11.23: 
"Porque em verdade vos digo que qualquer que disser a este monte: Ergue-te e lança-te no mar, e não duvidar em seu coração, mas crer que se fará aquilo que diz, tudo o que disser lhe será feito".
De fato, se for fazer uma pequena busca virtual não será difícil encontrar o uso dessa passagem como justificativa para um "cheque em branco" do banco de milagres de Deus, logo esses autores, nesse contexto, não estavam errados com tal citação. Aliás, é possível encontrar muitos livros  (cristãos) sobre o poder das palavras.

Mas afinal, qual o seu entendimento, como cristão? Você leu o versículo e o que entendeu (até hoje)?

A resposta, mais comum, pode estar próxima da ideia de que a fé é uma força poderosa, em si mesma, capaz de produzir os efeitos desejados (natureza da fé), até mesmo recorrendo a um ouvir e pronunciar, repetidas e inúmeras vezes, de palavras da Bíblia, para o surgimento de tal força (origem da fé).

Porém se você apenas leu esse versículo (como os autores daquele livro e muitos cristãos), provavelmente caiu no mesmo problema apontando por Vincent Cheung [2], pois deixou de usar alguns recursos hermenêuticos, conforme veremos, para se chegar a um ensinamento completamente diferente, profundo e impactante.
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O primeiro recurso ignorado foi o contexto imediato da passagem, na qual deve ser observado se as passagens anteriores e posteriores a ela estão ligadas.

E, de fato, essa passagem está inserida numa estrutura literária de analogia, que é um "processo cognitivo de transferência de informação ou significado de um sujeito particular (fonte) para outro sujeito particular (alvo)" [3]. Quem é então a fonte e o alvo? Para isso, é preciso identificar os elementos desse contexto.


Com base na ilustração acima, há a seguinte ordem cronológica de eventos:
  • Jesus amaldiçoa a figueira (Marcos 11:12-14);
  • Visita de Jesus ao templo (Marcos 11:15-18);
  • Murchamento da figueira (Marcos 11:19-21);
  • Ensino de Jesus (Marcos 11:22-26), a respeito de fé, oração e perdão, em que está inserido o "versículo-problema" (v. 11.23).
Note então o contexto imediato da passagem, que não pode ser ignorado, pois torna o ensino de Jesus, ao final, mais claro.
"No dia seguinte, quando estavam saindo de Betânia, Jesus teve fome. Vendo à distância uma figueira com folhas, foi ver se encontraria nela algum fruto. Aproximando-se dela, nada encontrou, a não ser folhas, porque não era tempo de figos. Então lhe disse: "Ninguém mais coma de seu fruto". E os seus discípulos ouviram-no dizer isso." (Marcos 11:12-14 ).
"Chegando a Jerusalém, Jesus entrou no templo e ali começou a expulsar os que estavam comprando e vendendo. Derrubou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos que vendiam pombas e não permitia que ninguém carregasse mercadorias pelo templo. E os ensinava, dizendo: "Não está escrito: ‘A minha casa será chamada casa de oração para todos os povos’? Mas vocês fizeram dela um covil de ladrões". Os chefes dos sacerdotes e os mestres da lei ouviram essas palavras e começaram a procurar uma forma de matá-lo, pois o temiam, visto que toda a multidão estava maravilhada com o seu ensino" (Marcos 11:15-18).
"Ao cair da tarde, eles saíram da cidade. De manhã, ao passarem, viram a figueira seca desde as raízes. Lembrando-se Pedro, disse a Jesus: "Mestre! Vê! A figueira que amaldiçoaste secou!"". (Marcos 11:19-21).
"Respondeu Jesus: "Tenham fé em Deus. Eu lhes asseguro que se alguém disser a este monte: ‘Levante-se e atire-se no mar’, e não duvidar em seu coração, mas crer que acontecerá o que diz, assim lhe será feito. Portanto, eu lhes digo: tudo o que vocês pedirem em oração, creiam que já o receberam, e assim lhes sucederá. E quando estiverem orando, se tiverem alguma coisa contra alguém, perdoem-no, para que também o Pai celestial lhes perdoe os seus pecados. Mas se vocês não perdoarem, também o seu Pai que está no céu não perdoará os seus pecados." (Marcos 11:22-26).
Assim, "ao colocar o episódio do templo entre o amaldiçoar e o murchamento da figueira, Marcos identifica o templo - ou por implicação, o sistema de adoração do templo e o privilégio dos judeus de terem o templo de Deus em seu meio - com a figueira. (...) Em outras palavras, como a figueira com folhas mas nenhum fruto, havia muito barulho e movimento no templo, mas nenhuma substância espiritual. Havia aparência de dedicação religiosa, mas não havia nenhuma realidade e poder nisso" [2].

Essa falta de substância espiritual não estava ligada necessariamente ao comércio existente no templo, pois os "comerciantes estavam realizando um serviço necessário", de apoio aos peregrinos que vinham de muito longe, já que "seria difícil  para eles trazerem seus animais para o sacrifício", mas o problema era "a forma como eles ocupavam a área", "profanando a área do templo, e ao invés de promover a adoração, a forma como conduziam os negócios na verdade impedia a mesma. Provavelmente eles tomavam vantagem dos peregrinos, cobrando preços altos pelos animais e oferecendo-lhes taxas de câmbio absurdas" [2].

Além disso, os compradores, que também foram expulsos por Jesus, não eram tão inocentes assim, mesmo que fossem "vítimas dos comerciantes gananciosos e irreverentes", pois toleravam "essa abominação no templo", não demonstrando zelo pelo lugar [2].

Porém essa crítica-revelação também precedeu um pronunciamento de destruição final, que seria bem mais profundo do que aparentava ("seca desde as raízes"), e um segundo recurso hermenêutico, adiante, esclarecerá melhor isso.

(Interessante notar como Jesus iniciou uma analogia, já sabendo do que aconteceria depois).
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O segundo recurso, o contexto mais amplo da passagem, leva em conta o contexto de capítulos anteriores, posteriores ou até do livro inteiro.

E é nesse contexto em que surge, "com clareza crescente", o significado da destruição, primeiro com uma parábola, no início do capítulo 12 (Marcos 12.1-12), em seguida, sem simbolismo, até com exatidão temporal, no capítulo 13:
  • "Que fará, pois, o senhor da vinha? Virá, e destruirá os lavradores, e dará a vinha a outros. (...) E buscavam prendê-lo, mas temiam a multidão; porque entendiam que contra eles dizia esta parábola; e, deixando-o, foram-se" (Marcos 12.9, 12). Note que a mensagem estava ficando clara.
  • "E, respondendo Jesus, disse-lhe: Vês estes grandes edifícios? Não ficará pedra sobre pedra que não seja derrubada. (...) Na verdade vos digo que não passará esta geração, sem que todas estas coisas aconteçam" (Marcos 13.2, 30). Jesus aqui se referia ao templo fisicamente.
De fato, acrescenta Cheung, no ano 70 d.C., como Jesus predisse, os "romanos marcharam para Jerusalém, e destruíram o templo juntamente com seu sistema de adoração" [2]. E assim conhecemos como a figueira ficou seca. E como seria desde as raízes? Aí entra o próximo recurso hermenêutico, a seguir.

(Aqui também foi utilizado o recurso do conhecimento histórico para fortalecer a interpretação).
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Já o terceiro recurso, o contexto geral da Bíblia, na qual se conhece o fundo histórico e cultural, especialmente do público-alvo (os judeus), é fundamental para entender a importância do ensino de Jesus sobre fé, oração e perdão, inclusive dando um sentido mais completo da parábola da vinha, citada antes, no início do capítulo 12.

Ora, como "em qualquer cultura ou época, os escritores de um documento, assim como os leitores, sofrem a influência do contexto social", "dada a existência de um abismo cultural entre nossa era e os tempos bíblicos (...) é imperativo que nos familiarizemos com a cultura e os costumes de então" [4] (p. 89, 90).

Aqui através de passagens paralelas, é importante voltar à passagem da visita de Jesus (Marcos 11:15-18) e perceber suas citações a Isaías 56.7 e Jeremias 7.11 (leia Jeremias 7.3-11):
  • "porque a minha casa será chamada casa de oração para todos os povos" (Isaías 56.7);
  • "Esse templo, que leva o meu nome, tornou-se para vocês um covil de ladrões? Cuidado! Eu mesmo estou vendo isso", declara o Senhor" (Jeremias 7.11).
As pessoas não estavam usando o templo para roubar, mas "como um covil de ladrões - um lugar de descanso e segurança para criminosos" [2].

"O povo no tempo de Jeremias estava oprimindo estrangeiros, órfãos e viúvas; estavam derramando sangue inocente, e seguindo outros deuses. Eles tinham feito do templo "um covil de ladrões", mas ainda pensavam estar a salvo. (...) O templo estava tumultuado de pessoas e atividades, mas não existia nenhuma adoração real, nenhuma reverência verdadeira. Eles usavam o lugar para seu proveito financeiro, para progresso social, e algumas vezes apenas por mera conveniência. No processo, sobrepujavam qualquer um que viesse oferecer oração e adoração sincera" [2].

"Eles estavam agindo como se não nada aconteceria a eles, porque tinham o templo de Deus" [2].

Mas esse templo (sistema) já não dava mais "frutos", só tinham "folhas", além disso foi pronunciado uma destruição que não seria apenas aparente, apenas fisicamente (pois eles poderiam construir outros templos), porém "desde as raízes".

E aí entra o ensino de Jesus através da fé.

Ora, na mente de um judeu, o templo era "a casa de oração, e o lugar onde ele oferecia sacrifícios por seus pecados. Mas alguns tinham amarrado tanto a adoração, oração e perdão a esses lugar e seu sistema, que isso tinha produzido em seu pensamento não somente uma falsa concepção de piedade, mas também um falso senso de segurança." [2].

E nesse contexto, o que aconteceria se o templo acabasse? Como as orações seriam respondidas? Como eles encontrariam perdão pelos seus pecados? Como seria a adoração? Como entrariam em contato com Deus?

"Jesus responde: "Tenham fé em Deus". Ninguém jamais foi justificado sobre a base da obediência à lei, mas a base de uma relação correta com Deus sempre foi a fé e nada mais. (...) O assunto sempre foi a fé, e esse era o problema com os judeus" [2]. Daí a importância da fé em tantos outros encontros com Jesus e com os apóstolos.
"Sem fé é impossível agradar a Deus, pois quem dele se aproxima precisa crer que ele existe e que recompensa aqueles que o buscam." (Hebreus 11:6).
"Assim, a lei foi o nosso tutor até Cristo, para que fôssemos justificados pela fé. Agora, porém, tendo chegado a fé, já não estamos mais sob o controle do tutor." (Gálatas 3:24-25).
Os judeus se prenderam a algo que desde o início era apenas uma sombra, temporário, figura, representação do perfeito: Jesus, nosso mediador, sacrifício, Santo dos santos, no qual temos acesso pleno a Deus através da fé em Cristo (não deixe de ler o livro de Hebreus).

A "verdade é que todos os elementos da adoração no templo permanecem, mas agora os temos em sua manifestação plena, e não na forma de tipos e sombras. (...) Embora não tenhamos mais um templo - isto é, o edifício - nossas orações não são enfraquecidas. Mesmo sem o templo, a fé ainda pode ir tão longe a ponto de mover montanhas (v. 23), e receber "tudo o que" pedimos em oração (v. 24). Quanto ao perdão, embora o sistema de sacrifício animal tenha desaparecido, o verdadeiro sacrifício chegou e permanece, que é Jesus Cristo, o Cordeiro de Deus. Assim o perdão pertence a qualquer um que tenha fé" [2].


Essa foi a revolução (grande transformação) pela fé no sistema religioso deles. E uma vez tendo o entendimento mais profundo da passagem, podemos falar da real natureza da fé, principalmente por causa das distorções nos dias de hoje.
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Agora é preciso corrigir primeiro uma distorção a respeito da fé, "como uma força - que o poder reside na crença como tal - ao invés de entender a fé como a crença nas proposições divinamente reveladas que requer o exercício ativo de Deus do seu poder para fazer o bem" [2].

E para isso é necessário entender a origem dessa fé, não como o resultado de um grande esforço mental, mesmo a partir da leitura repetida de trechos bíblicos, como, por exemplo, "uma pessoa doente pode dizer "Por suas feridas, fui curado" (1 Pedro 2.24) centenas de vezes num dia", para ser curado [2].

Ora, se a fé sempre viesse do ouvir a palavra de Deus, então o evangelismo mais eficaz seria prender todos os incrédulos numa sala e fazer uma lavagem cerebral tocando a Bíblia todos os dias em alto e bom som.

No entanto, "a verdadeira fé é um dom de Deus (Efésios 2.8). Em 1 Coríntios 12.9, Paulo se refere ao tipo de fé que é uma manifestação especial do Espírito. (...) Assim como a fé para crer no evangelho para salvação (...), essa manifestação especial de fé é concedida também "como [ele] quer (1 Coríntios 12.11)" [2].

"A diferença é que se teremos fé, ou se teremos esse tipo de fé, depende inteiramente da decisão de Deus. (...) Nossa fé depende da obra do Espírito, que aplica a palavra de Deus aos nossos corações e nos convence de sua verdade, dando-nos confiança de seu efeito, poder e relevância. (...) Dessa forma, a fé em Deus pode operar tanto em nosso benefício próprio como para o avanço do seu reino, e esses dois raramente estão em conflito quando colocamos o primeiro dentro do interesse mais amplo do último" [2].

Note no ensino de Jesus, o alerta contra o individualismo extremo da fé, que pede o perdão a Deus, mas que não perdoa o irmão.


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Assim, com um entendimento melhor da revolução pela fé, com alguns recursos hermenêuticos, é preciso separar quando a sua fé, em Deus, pode atuar de forma ordinária ou extraordinária, modificando a realidade ao seu redor.

A primeira ocorre dentro de limites conhecidos, como, por exemplo, a pessoa pessimista que deixa de ver boas oportunidades, tornando a sua situação pior do que já estava (o contrário também é verdadeiro). Nesse caso, é fácil perceber o que fez a realidade mudar. Nem por isso deixamos de depender de Deus em nosso pão diário (Mateus 6.11).

Já a segunda, não é uma extrapolação do primeiro, como se precisasse de um esforço mental bem maior, porque a fé é um dom de Deus, logo alinhado com os propósitos dEle, mas não deixa de ser usada pelo ser humano.

Ora, as dez pragas do Egito não ocorreram com o propósito de apenas beneficiar pessoalmente a Moisés e foram eventos bem maiores que o mover de um monte, mesmo que hoje, possam existir explicações científicas para essas dez pragas, não deixaram de ser extraordinárias, nem deixaram de ser resultados da fé dele em Deus.
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Senhor, concede-nos uma fé que possa mover mais do que um monte, ir além do que as nossas ciências conhecem, para a tua glória e para o bem de teu povo. Amém.
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[1] Bezerra, Daniel. Pura Picaretagem - Como os livros de esoterismo e autoajuda distorcem a Ciência para te enganar. Saiba como não cair em armadilhas! / Daniel Bezerra, Carlos Orsi. - São Paulo: LeYa, 2013.

[2] Cheung, Vincent. Fé para Mover Montanhas. Neto, Felipe Sabino de Araújo (trad). Acessado em 12 de novembro de 2013. Disponível em: www.monergismo.com/textos/comentarios/fe-montanha_cheung.pdf

[3] Analogia. Acessado em 13/11/2013. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Analogia.

[4] ZUCK, Roy B. A Interpretação Bíblica - Meios de Descobrir a Verdade da Bíblia. ed. Vida Nova, 2009.

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