Alguns breves comentários sobre criança na antiguidade da Grécia


Provocado por um amigo, que perguntou sobre a infância no grego antigo, resolvi deixar alguns breves comentários de algumas pequenas leituras.

No grego, a palavra utilizada para "criança" é "pais" (παῖς, παιδ-), mas é interessante também perceber como sua raiz está ligada não apenas gramaticalmente a outras palavras: paidia, paicso e paideia.

Nos tratados éticos de Aristóteles (Ética a Eudemo e Ética a Nicomaco), uma criança se distingue de um adulto por não possuir ainda "prévia escolha", apesar de poder voluntariamente tanto desejar como opinar, mas não de modo deliberativo (BINI, 2015, p. 99), e da mesma maneira voluntária, quanto a agir por apetite ou impulso (ZINGANO, 2008, p. 63).

A palavra paidia pode significar um "jogo infantil", mas não um jogo qualquer ou algo "infantilizado", porém um instrumento pedagógico. Um exemplo disso, é o que está presente em um diálogo entre um capitão e um rapsodo: "e Diceópolis brinca com o rapsodo assim como Sócrates com os alunos" (JOINT, 2014, p. 18). O verbo "brinca" na oração vem do grego "paicsei (παίζει), mas é interessante notar a comparação com Sócrates, uma vez que, no diálogo, fica clara a intenção do capitão Diceópolis em querer colocar o rapsodo em aporia, em um estado de reconhecimento de ignorância a respeito de um assunto, que julgava antes saber. A fama de Sócrates era enorme nesse sentido - principalmente negativa.

Nos tratados políticos de Platão (Leis e República), esse instrumento pedagógico da paidia faz parte de algo maior, de uma cultura educacional ou educação cultural, o qual se entende por paideia, um conceito grego que integra vários aspectos ou conceitos, hoje, modernos, como civilização, cultura, educação, tradição ou literatura (JAEGER, 1995, p. 2). 

Na verdade, na visão de um Estado ideal, a base de equilíbrio da polis são leis escritas e normas não escritas da paideia, no entanto essas normas, que representam usos não escritos e costumes fixos, são mais importantes que a lei escrita. Daí, dentro das Leis, numa tripla divisão da infância (os 3 primeiros anos, entre 3 e 6 anos, e após 6 anos), o fundador da pedagogia infantil direciona diferentes atividades para a formação do caráter do futuro cidadão - aliás, é no hábito dessas atividades que se desenvolve o caráter, daí a semelhança entre as palavras gregas ἔθος (hábito) e ἦθος (caráter). Na última divisão, focam-se em práticas de "ginástica" (esgrima, tiro, equitação etc), dança e exercícios em círculo, de modo a preparar para uma formação militar, por conseguinte atlética. Nesse sentido, há os esquemas (canções, atitudes e gestos rítmicos), que forma os jogos infantis, essenciais ao sistema educativo, com o mesmo valor de leis, no sentido de sagrados, intocáveis ou invariáveis - daí a expressão do Homem como um joguete de Deus (JAEGER, 1995, p. 1348-1370).

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JAEGER, Werner. Paidéia - A formação do Homem Grego. ed. 3. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
JOINT ASSOCIATION OF CLASSICAL TEACHERS, The. Aprendendo Grego. 2. ed. São Paulo: Odysseus Editora, 2014.
BINI, Edson. Aristóteles: Ética a Eudemo. Tradução e notas Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2015.
ZINGANO, Marco. Aristóteles: tratado da virtude moral; Ethica Nicomachea I 13 - III 8. Tradução, notas e comentários Marco Zingano. São Paulo: Odysseus Editora, 2008.

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