Breves apontamentos sobre a definição de Aristóteles do princípio mais seguro para não se contradizer (Metaf., Γ, 1005 b 19-22)


Em Metafísica, livro gama, página 1005, coluna b, linhas 19-22, Aristóteles coloca a seguinte definição: "τὸ γὰρ αὐτὸ ἅμα ὑπάρχειν τε καὶ μὴ ὑπάρχειν ἀδύνατον τῷ αὐτῷ καὶ κατὰ τὸ αὐτό". E acrescenta: "(καὶ ὅσα ἄλλα προσδιορισαίμεθ᾽ ἄν, ἔστω προσδιωρισμένα πρὸς τὰς λογικὰς δυσχερείας)". A primeira frase literalmente seria assim: "pois o mesmo ambos pertencer e não pertencer impossível ao mesmo e sob o mesmo".

Essa passagem é muito conhecida como a definição do "princípio da não contradição", porém o seu significado parece não ser o mesmo ou não ter a mesma precisão em todos. Reale (2014, p. 143, 145), por exemplo, a traduz como: "É impossível que a mesma coisa, ao mesmo tempo, pertença e não pertença a uma mesma coisa, segundo o mesmo aspecto (e acrescentem-se também todas as outras determinações que se possam acrescentar para evitar dificuldades de índole dialética)". Já Tugendhat e Wolf (2005, p. 45) a traduzem como: "É impossível que um e o mesmo (predicado) se aplique e não se aplique, sob o mesmo aspecto e ao mesmo tempo, a um e ao mesmo (sujeito) (e a isso sejam ainda acrescentadas as outras determinações adicionais devido às objeções lógicas". Com esses dois já é possível notar uma diferença enorme, cujos caminhos posteriores podem ser os mais variados possíveis.

Para caminhar por algo mais esclarecido, vale antes trazer a definição de contradição de Aristóteles dos Segundos Analíticos (1987, p. 14): "Uma contradição é uma oposição que não admite por si mesma qualquer termo intermédio. A parte de uma contradição que une um predicado a um sujeito é uma afirmação, e a parte que nega um predicado de um sujeito, uma negação". E também uma fórmula semelhante à da Metafísica, em Da Interpretação (MATA, 2013, p. 9): "Seja a contradição isto: a afirmação e a negação que se opõem. Digo que se opõem [como discursos declaratórios afirmar e negar] a mesma coisa de uma mesma coisa; não homonimamente, e [considerando] todas as outras restrições que tais por onde afastamos os embaraços sofísticos" (17 a 25-38). Também afirma Aristóteles (MATA, 2013, p. 35) que é "impossível, em relação a uma mesma coisa, que as fórmulas proposicionais em oposição sejam verdadeiras".

Mas a tradução de "λογικὰς" de Tugendhat e Wolf (2005, p. 45) por "lógicas" é mais literal, que a de Reale (2014, p. 145), em "dialética", porque Aristóteles faz uso dessa palavra, às vezes, como contraposição às objeções "analíticas". Nesse ponto, esclarece Porchat quanto ao argumentar "logicamente": "argumentar de modo meramente verbal ou mediante proposições de caráter geral, nem especificamente apropriadas à matéria em discussão nem particularmente concernentes ao gênero preciso de que nos ocupamos. Pois tal modo de proceder, que não se pode chamar de científico, serve-se, freqüentes vezes, de elementos comuns (koiná) a vários objetos e, assim, constrói, verbalmente, seus argumentos, permanecendo no âmbito de um discurso (lógos, donde logikós) que, embora visando determinado objeto, não se lhe ajustou ainda, movendo-se na esfera vaga do geral e do comum, (...) essa modalidade de argumentação é própria à dialética e, neste preciso sentido, raciocinar logikós é raciocinar dialeticamente" (2001, p. 166, 167). Além disso, quando o discurso dialético ou "lógico" se considera suficiente, então é um discurso sofístico (PORCHAT, 2001, p. 167).

O princípio posto é uma definição, que "mostra o que é uma coisa, enquanto a demonstração mostra que algo é de algo, ou que não é" (PORCHAT, 2001, p. 299). Por isso, a definição requer apenas ser compreendida (GOMES, 1987, p. 42), pois, diferente da hipótese, nem é universal nem particular, mas neutra (GOMES, 1987, p. 43).

Diante do que já foi colocado, a tradução de Tugendhat e Wolf é mais próxima da intenção do autor do que a de Reale. No entanto, esses e outros autores, e muitos leitores, ao traduzirem "ἅμα" por "ao mesmo tempo", comumente dão a entender haver uma referência temporal, como se tratando de eventos físicos ou mentais, acontecendo ao mesmo tempo - algo como se fosse impossível alguém pensar ou dizer duas coisas contraditórias ao mesmo tempo. Não se trata disso!

A palavra "ambas" (ἅμα) refere-se a declarações em oposição (implicitamente incluindo o mesmo sujeito e o mesmo predicado, em afirmação e em negação), do trecho "ὑπάρχειν τε καὶ μὴ ὑπάρχειν" (literalmente "pertencer e também não pertencer"), por conseguinte de uma impossibilidade lógica, ou melhor, analítica em dizer algo verdadeiramente - por isso, na mesma coluna da Metafísica, esse princípio é dito antes também um princípio dos silogismos. Na verdade, é o "princípio dos princípios".

Referências

ARISTÓTELES; MATA, José Veríssimo Teixeira (trad). Aristóteles. Da Interpretação. São Paulo: Editora UNESP, 2013.
ARISTÓTELES; GOMES, Pinharanda (trad). Organon IV - Analiticos Posteriores. Tradução e Notas de Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães Editores, 1987.
ARISTÓTELES; REALE, Giovanni. Metafísica. Volume II: Texto grego com tradução ao lado. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
ARISTÓTELES; ROSS, W.D. (ed). Aristotle's Metaphysics. Oxford: Clarendon Press. 1924.
TUGENDHAT, Ernst; WOLF, Ursula. Propedêutica Lógico-Semântica. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2005. 
PORCHAT, Oswaldo. Ciência e dialética em Aristóteles. São Paulo: Editora UNESP, 2001.

Observações 

Esse texto em grego (ROSS, 1924) também está no Perseus:
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text;jsessionid=4A2E0AAD881051B2EFC0D5FC69506EBF?doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0051%3Abook%3D4%3Asection%3D1005b

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