O jogo da comunidade científica, o jogo científico e a velha guerrinha ateu evolucionista x criacionista

Esta reflexão nasceu hoje pela manhã em função de uma postagem, na qual um amigo me citou. Trata-se do vídeo legendado por Luc Anderssen (abaixo). Logo não é algo bem refletido e exaustivo.


Imagine você diante de duas pessoas jogando um jogo que você não domina as regras, mas tem uma noção vaga das coisas (um leigo). Como todo leigo, você deveria ser cauteloso em não entrar num jogo contra alguém treinado, exceto se o outro tivesse uma postura caridosa em tolerar sua lentidão e derrotas pedagógicas. O treinado ficaria realmente feliz em ter vencido alguém não-treinado? Talvez, diante de outros leigos, para ego próprio e/ou dos amigos.

Isso me lembra agora Francis Bacon, tradicionalmente tido como fundador da ciência moderna como a conhecemos (outra histografia vem mostrando que foram certos medievais, mas isso é outra história), que tinha uma preocupação com o progresso geral e não pessoal, como descrito em seu Novum Organum. Alguns trechos: "A verdadeira e legítima meta das ciências é a de dotar a vida humana de novos inventos e recursos (...) não o próprio lucro e a glória acadêmica" (LXXXI); "a verdade é filha do tempo, não da autoridade" (LXXXIV). Alguns medievais (mas generalizando) estavam sendo criticados aqui por ele, porque estavam deixando o estilo cooperativo do jogo científico, e abraçando o estilo competitivo, por causa de seus compromissos teológicos - precisavam lutar contra os terríveis pagãos e ateus. E agora lutamos contra os terríveis criacionistas (disfarçados). Como o mundo dá voltas!

Você não é biólogo nem cientista nem filósofo, então qual a sua postura como leigo diante deste vídeo? Você toma algum partido? Estou interessado aqui na postura dos leigos. E sou um deles. Ótimo! Assim posso tentar ser o mais natural possível no que quero dizer. O que Richard Dawkins fala? Alguns pontos principais: 1. a natureza 'parece' ter sido projetada; 2. o 'legado histórico' é a melhor inferência diante de uma evidência de imperfeição, contra a perfeição defendida pelo 'design inteligente'.

(Veja como o "parece" é usado como um instrumento linguístico para conter uma afirmação que estamos fazendo, isto é, é caso em que estou vendo pelo senso comum que foi projetada, mas tenho receio de que alguém vai mostrar sistematicamente que estou errado.)

Um dos segredos de um jogo argumentativo é esconder suas premissas implícitas (se explicar a piada, perde a graça). Então preciso perguntar, como leigo, o que, quando e como estava sendo criticado? Essas perguntas ajudam a observar melhor o jogo científico. Mas há as perguntas que no jogo da comunidade científica, como estes: quais os compromissos pessoais, sociais e metodológicos de quem crítica? Porém cuidado: a regra de um jogo não se aplica no outro (não invalido o trabalho de científico em si de alguém porque a hipótese nasceu de um sonho ou de uma crença em macarrões inteligentes voadores).

Pelo vídeo (que é antigo), a crítica é dirigida aos que inferem perfeição a partir da aparência de projetado na natureza, como aquelas pessoas que olham para tudo ao redor e concluem: "Que maravilha de perfeição toda essa diversidade e complexidade!". Mas o que o vídeo não diz (nem diria) é que em 1986 Richard Dawkins dirigia sua crítica à "analogia do relojoeiro", teologicamente desenvolvida pelo criacionista William Paley, respondendo biologicamente com seu "O relojoeiro cego". E dentro desse jogo competitivo, afirmou: "Penso igualmente que, antes de Darwin, o ateísmo até poderia ser logicamente sustentável, mas que só depois de Darwin é possível ser um ateu intelectualmente satisfeito". O ex-biólogo Dawkins colocou a Biologia como a Caixa-Preta da Teologia de Paley, assim como Darwin fez em sua época (apesar de Darwin ter recebido muitas críticas científicas na época, porém prevaleceu o jogo da comunidade, mas isso é outra história). 

Entretanto Darwin tinha sua Caixa-Preta, já que desconhecia o motivo pelo qual ocorria a variação em uma espécie, pois a base molecular da vida passou a ser elucidada, a partir da década de 1950, com a Bioquímica (o limite da Biologia). E em 1996 aparece o bioquímico Michael Behe com "A Caixa-Preta de Darwin: o Desafio da Bioquímica à Teoria da Evolução", esclarecendo mais sobre o jogo científico dos sistemas biomoleculares, no qual o limite do conhecimento não é dado por comparações anatômicas (como neste vídeo), nem precisam de narrativas históricas como seu método científico (como neste vídeo). Michael Behe, então, apresentou a noção de complexidade irredutível, como uma peça da Teoria do Design Inteligente, que permite a testabilidade (falseabilidade) de tais sistemas em laboratório (outros já apresentaram outras noções dentro da Teoria do Design Inteligente, como a complexidade especificada por William Dembski).

Usando as peças do jogo da DI, tente identificar por este vídeo quem são as partes irredutíveis do sistema em questão. Não dá! Ainda assim quem conhece bem as regras do jogo científico, diz-se vencedor ("comprovado" ou "demonstrado") diante dos outros. Usando a analogia principal de Behe e de Dawkins, o relógio, não sabemos neste vídeo se estão criticando a proteção de plástico de um relógio como parte irredutível ou acessória de seu sistema cronológico. Além disso, neste vídeo há uma confusão entre as noções de projeto e perfeição, pois nem tudo que é projetado é perfeito, nem mesmo se o projetista (seja lá o que for) for perfeito (e "perfeito" não é científico, mas isso é outra história). Normalmente nenhum programador vai dizer que seu código é perfeito, protegido contra qualquer acidente ou mudança ambiental, porém não vai negar que seu software foi projetado. E como detectar ter sido projetado? E para quê saber se foi projetado? Problemas próprios de ciências de detecção de ações por agentes inteligentes, assim como em ciência forense.

Três recomendações: 1. "A Estrutura das Revoluções Científicas" de Thomas Kuhn, para ser mais cauteloso nesse mundo das ciências. 2. Ler alguma literatura atualizada de introdução em Filosofia da Linguagem, para entender melhor o encanto dos diferentes jogos de linguagem. 3. O blog pos-darwinista.blogspot.com.br para entender o jogo sujo (mas ainda um jogo) em não diferenciar Criacionismo de DI (o evolutionnews.org vai na mesma linha).

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A "lógica do parece" é desenvolvida por Sellars no livro "Empirismo e filosofia da mente" (um clássico em filosofia da linguagem). Na verdade, peguei emprestado dele. Quis apenas fazer uma observação entre parênteses, dessa "manipulação verbal", de que a colocação do "parece" busca obscurecer psicologicamente o que está realmente afirmando (p. 22).

O ponto que quis enfatizar é que a crítica ao uso de "perfeição" é aplicada indistintamente ao uso de "projetado", como se estivesse criticando a ideia de projeto, porque estava criticando a ideia de perfeição. E aqui está um grande problema, claro a quem entende de DI realmente, pois nem todo projeto é perfeito, mas o que importa para o DI é ser projetado, enquanto que para o contexto religioso não há tal rigor (desconfio que Dawkins sabe disso, mas prefere jogar contra leigos). O uso de perfeição é bem diversificado, é mais como um elogio a alguém que fez algo maravilhoso, belo, funcional nos mínimos detalhes etc. Por isso Palley usou teologicamente a analogia do relógio. E Dawkins criticou apresentando "falhas" anatômicas biologicamente. E Behe respondeu bioquimicamente contra Dawkins fazendo a devida distinção entre detectar efeito de projeto e não algo subjetivo como perfeito.

Alguns autores em Filosofia da Linguagem que passei a conhecer são Sellars (acima), Austin (Sentido e Percepção), Wittgenstein (Investigações filosóficas), Robert Brandom (Articulando Razões). Em Filosofia da Ciência, Acredito que Thomas Kuhn é um "produto" dos movimentos na Linguagem.

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