Minhas memórias. Minha alma.


Esta é uma continuação do texto "Minha alma. Meu refúgio".

Uma dificuldade apontada, não explicada neste texto, são os relatos de primeira pessoa ("Eu vi"; "Eu senti"), que se apresentam de modo incorrigível, como se suas evidências fossem evidentes ("são fatos incontestáveis").

Primeiro, é preciso esclarecer a diferença entre evidência e evidente. Para isso, recorro a Austin: "A situação na qual se poderia dizer, com propriedade, que possuo evidências para afirmar que determinado animal é um porco é, por exemplo, aquela em que o próprio animal não está à vista, mas posso ver inúmeras pegadas semelhantes às de um porco nos arredores do local onde ele fica. Se encontro alguns galões de ração para porco, as evidências aumentam, e os ruídos e o cheiro podem fornecer mais indícios. Contudo, se o animal aparece e se mostra plenamente visível, não há porque reunir mais indícios; o seu aparecimento não me fornece mais uma evidência de que se trata de um porco, agora posso simplesmente ver que é um desses animais, a questão está decidida" (J. L. Austin. Sentido e Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 122).

Expor uma narrativa, baseada numa seleção significativa de experiências vividas (sentidas, observadas), não é expor um fato evidente, contudo uma evidência factual, robusta (!) ou não. Percebe a diferença no uso das palavras ("fato evidente" e "evidência factual")? E não precisa ser uma narrativa baseada em eventos antigos. Pode ser algo bem observado de perto. É o caso, por exemplo, de quando um cachorro passa bem na sua frente, e você diz ao colega ao lado: "Olha só este cachorro!". Mas seu colega responde: "Que cachorro?!". Esse é um tipo de situação bem cotidiana, de uma evidência factual robusta, porém no mínimo evidência ou não evidente o suficiente para alguém bem próximo ainda questionar pelo menos inicialmente (talvez, por falta de atenção (!)).

As demonstrações lógicas ou matemáticas são espécies de coisas incorrigíveis. Uma vez apresentadas, estando formalmente corretas, nenhum questionamento remove sua conclusão, a partir de suas premissas. O resultado é sempre o mesmo, independente de quem observa, ontem ou hoje. O mais interessante é seu acesso público genuíno: coloca qualquer ouvinte numa posição de questionador, para então verificar, por si só, a sequência de afirmações, até perceber, de modo genuíno, a inevitável conclusão, colocada antes pelo outro. E se o ouvinte não chega a mesma conclusão, questiona-se não a demonstração, mas a capacidade lógica, matemática ou até racional do ouvinte. (Aliás, esse foi o pensamento cartesiano dominante na modernidade quanto à imagem do que é ser racional).

Os relatos de primeira pessoa são também espécies de coisas incorrigíveis. Mas esses relatos são incorrigíveis de um modo distinto das demonstrações. Não há um acesso público, porém é privado a quem relata, apesar de ser genuíno, e, mesmo assim, suscetível (!) de acerto ou erro. Adicionalmente se recorre a evidências (!) de terceiros, o que não é necessário nas demonstrações. Então devo deixar de relatar em primeira pessoa? De forma nenhuma! Não é esse o ponto. O ponto é a nossa expectativa equivocada, quando assim relatamos: esperamos o que se espera de uma demonstração. Devemos, entretanto, esperar o que de fato se espera de um relato assim: respeito, (des)confiança, (falta de) empatia, investigação empírica, se houver evidências de terceiros acessíveis.

Novamente, haver evidências não é ser evidente. Ser passível de investigação é estar aberto a equívocos, inclusive pessoais. Às vezes, uma evidência negativa é suficiente para diluir a força de várias evidências positivas. E o quanto alguém está disposto a rever suas próprias interpretações a cada experiência, que julga "evidente", é outra história. Na verdade, esse é um tema delicado dentro da Filosofia da Mente, ou que já foi delicado por causa da Filosofia Analítica, mais recente.

(Se um dia, houver uma tecnologia que possa registrar tudo que sentimos (imagens, pressão, temperatura, cheiro etc), antes de chegar até a consciência, talvez aí o relato de primeira pessoa deixe de ter um acesso privado.)

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