Um leve ajuste na tradução de João 15:15


"Já vos não chamarei servos [δούλους], porque o servo [δοῦλος] não sabe o que faz o seu senhor; mas tenho-vos chamado amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho feito conhecer [ἐγνώρισα]." (João 15:15, ACF).

Quero chamar a atenção para "servo" e "conhecer".

1. O substantivo (transliterado sem acento) doulos (δοῦλος), em versões mais antigas, era traduzido por “escravo”, mas muitos tradutores passaram a optar por “servo”. A razão da adoção por “servo” é evitar alguma conotação negativa de injustiça, como uma espécie de submissão violenta e forçada, como coloca Hendriksen (2011, p. 52).

2. Ao usar doulos, Jesus provavelmente estava fazendo uso do seu sentido de instrumento, não de “explorado” (injustamente). Quase 300 antes, na Ética de Aristóteles (1161b1-8), havia esse entendimento: “o escravo [doulos] é uma ferramenta viva tal como uma ferramenta é um escravo [doulos] sem vida. (...) Portanto, não pode haver amizade com um escravo [doulos] enquanto escravo [doulos], embora possa haver com ele enquanto ser humano”.

3. O verbo transliterado gnórizó, do aoristo em questão (ἐγνώρισα), vem de ginóskó (γινώσκω). O último, em geral, em vez do mero "conhecer", tenho adotado "ter familiaridade". Esse é um tipo de conhecimento pelo qual pode se dizer “mais tátil”, “prático” ou “experimentado”. 

4. Na Retórica, Aristóteles (1357a) aplica “bem conhecido” (gnorimos) para algo que nem precisa ser enunciado, em um argumento, porque já é implicitamente comum, familiar ou bem conhecido entre os ouvintes.

Diante desses pontos, outra tradução possível é:

"Já vos não chamarei "escravos", porque o escravo (enquanto instrumento) não sabe o que faz o seu senhor; mas tenho-vos chamado amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho feito familiar." (João 15:15, ACF).

-----------
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, 3. ed. [s.l.]: Edipro.
ARISTÓTELES. Retórica. Trad. Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto; Abel do Nascimento Pena. 2. ed. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005. (Obras Completas de Aristóteles).
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento: Romanos. São Paulo: Cultura Cristã, 2011.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Leituras: Psicologia Cognitiva - Robert J. Sternberg

Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ Λόγος, καὶ ὁ Λόγος ἦν πρὸς τὸν Θεόν, καὶ Θεὸς ἦν ὁ Λόγος. (Como Deus e não Deus?)

Tradução e comentários de Lucas 20:34-38 - os filhos deste e daquele mundo