Uma controvérsia na tradução de Mateus 16:23


"Mas ele, voltando-se, disse a Pedro [Πέτρῳ]: Sai [Ὕπαγε] de diante de mim [ὀπίσω], Satanás [σατανᾶ]; tu és para mim uma pedra de tropeço [σκάνδαλον], porque não cuidas das coisas de Deus, mas sim das dos homens." (Mateus 16:23, Sociedade Bíblica Britânica).

Há uma outra possibilidade para compreender essa passagem, que acredito mais simples e natural com os versículos mais próximos do capítulo. Vejamos antes estes seguintes pontos.

1. O nome "satana" [σατανᾶ], recebe tradicionalmente no NT a tradução "Satanás", porém, numa "leitura clássica", as opções são "oponente" ou "adversário".
1.1. O portal BibleHub adota o caso vocativo desse nome, por isso o nome próprio "Satanás" (Σατανᾶ).
1.2. O Perseus Hopper, especificamente Westcott e Hort, adota o acusativo, mas mantém em maiúsculo, como se fosse um nome próprio.
1.3. Tischendorf 8th Edition Greek New Testament mantém minúsculo.

2. Veja o jogo semântico de palavras, entre "Pedro" [Πέτρῳ] e "pedra de tropeço" [σκάνδαλον].
2.1. O significado de "Pedro" é "pedra pequena ou isolada", usada aqui como nome próprio.
2.2. Algumas traduções adotam "escândalo" para "skandalon", por causa do contexto histórico (entre os judeus e Jesus), mas "pedra de tropeço" vem originalmente da ideia da pedra que se move ou tropeça para causar a captura numa armadilha.

3. O verbo "phroneis" [φρονεῖς] é muito mais que compreensão.
3.1. Esse verbo está ligado a uma noção ética importante da época: sensatez (phronesis). 
3.2. Na Ética de Aristóteles, refere-se a um "uso judicioso da razão em circunstâncias extremas que não foram previstas nas leis, nos manuais, nos preceitos gerais etc." (ANGIONI, 2011, p. 318). 
3.3. Alguns tradutores adotam "prudência" ou "sabedoria".
3.4. Segundo Angioni (2011, p. 331), "a sensatez é uma habilitação para agir, de acordo com a razão. Segue-se, portanto, que a sensatez tem por tarefa ordenar o agente à ação. O entendimento, em contrapartida, é apenas judicativo: consiste em discernir o que é correto nas mesmas matérias sobre as quais o homem sensato emite ordens".
3.5. Segundo Angioni (2011, p. 331), "a capacidade de bem deliberar é em si mesma insuficiente para definir a sensatez", pois "a sensatez requer a avaliação ou o discernimento quase-perceptual dos fatores singulares envolvidos nas circunstâncias da ação".
3.6. Veja a peculiaridade do momento de sofrimento anterior ao momento de glória do noção de "Filho do homem".

4. O advérbio "opisō" [ὀπίσω], traduzido como "para trás de" (mim), com o verbo "Hypage" (Ὕπαγε), dá a entender algo como "saia da minha frente".
4.1. Esse advérbio tem o sentido de "depois de", "atrás de" ou "o que se segue (atrás) de" (mim) em diante. Logo não é necessariamente um sentido estrito de lugar ou tempo, mas ligado a um evento ou situação (pessoal), no tempo e espaço.
4.2. O verbo tem o uso comum para casos em que uma pessoa é conduzida, colocada ou apresentada sob uma condição, a um lugar de julgamento, sob determinado estado, de vítima, testemunho, réu etc.

Diante dos pontos acima, uma sugestão de tradução é:

"Mas ele, voltando-se, disse (o seguinte aviso condicional) a Pedro: "Coloque-se após mim como adversário, pedra de tropeço és tu para mim. Porque não tem sensatez nas coisas de Deus, mas sim nas dos homens."."

Agora leia o capítulo com essa tradução, especialmente no verso seguinte (24), quando aparece o mesmo advérbio "ὀπίσω", traduzido como "após mim", em "Se alguém quer vir após mim", e no verso anterior (18, quando Pedro tinha acabado de receber uma grande responsabilidade, como pedra da igreja. 

O que estava em jogo era o tipo de "pedra" que Pedro deveria urgentemente ser: a pedra que foi designada logo antes, o que requer uma disposição virtuosa (a sensatez), para perceber a singularidade circunstancial das coisas de Deus, que é incompatível com a "pedra" relacionada com uma preocupação míope tão cedo manifestada, logo após tal designação. Diante dessa má preocupação, no calor urgente do momento, Jesus, então, havia lançado um aviso ("coloque-se de tal e tal maneira"), gramaticalmente imperativo, sob uma forma condicional implícita, já que em seguida escreve a consequência ("caso se coloque de tal e tal maneira, então tem tal e tal consequência"). Colocar assim no imperativo agrega linguisticamente mais (valor ao) sentimento de urgência, ao momento do enunciado.

Pode-se até colocar explicitamente o mesmo versículo da seguinte forma:

"Mas (por causa dessa preocupação de Pedro, logo após o ter designado pedra da igreja) ele, voltando-se, disse (o seguinte aviso condicional) a Pedro: "(se continuar com essa preocupação) vai se colocar após mim como adversário (não como a pedra que designei), logo será pedra de tropeço para mim. Porque (com essa preocupação míope mostra que) não tem sensatez para (enxergar a singularidade circunstancial de) as coisas de Deus, mas sim das dos homens."."

Note agora a forte ruptura (e retorno) do fluxo de pensamento no capítulo, com outras traduções como esta: "Ele, porém, voltando-se, disse a Pedro: Para trás de mim, Satanás, que me serves de escândalo; porque não compreendes as coisas que são de Deus, mas só as que são dos homens". (Mateus 16:23, ACF).

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ANGIONI, Lucas (2011). Phronesis e Virtude do Caráter em Aristóteles: comentários a Ética a Nicômaco VI. Dissertatio. v. 34. pp. 303-345.

Referências online:
https://www.bibliaonline.com.br/acf+receptus/mt/16/23+
http://biblehub.com/text/matthew/16-23.htm
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0155%3Abook%3DMatthew%3Achapter%3D16%3Averse%3D23

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