Interpretação bíblica e intelectualidade na Igreja

O livro mais mal tratado do mundo é a Bíblia. Eu não tenho mais dúvida disso.

Estava participando de uma EBD (Escola Bíblica Dominical) e vi coisas que me deixou incomodado, por isso fiz este estudo com o objetivo de apresentar a necessidade de interpretação bíblica séria e do intelectualismo na igreja, não necessariamente em todos.

Existe um grupo (maioria) dentro da igreja de hoje que defende ser o intelectualismo uma busca rigorosa sem frutos da letra, das palavras, dos conceitos, das idéias como um fim (finalidade) do estudo, como uma discussão sem fim e em si. Por isso, alguns levantam uma bandeira dizendo: “A Bíblia é muita clara, não precisa de interpretação, de discussão” e completam “Deus não é Deus de confusão”. Outra bandeira comum é a rejeição completa de qualquer fonte externa a Bíblia num estudo bíblico, e defendem que um estudo para ser bíblico deve ser estritamente bíblico: apenas usar a Bíblia e nada mais teológico ou filosófico.

Primeiro vamos falar sobre interpretação bíblica. É necessária? Até que ponto? Para não me acusarem inicialmente de filosófico ou teológico usarei como texto-base Atos 8.27-35:

“E levantou-se e foi; e eis que um etíope, eunuco, mordomo-mor de Candace, rainha dos etíopes, o qual era superintendente de todos os seus tesouros e tinha ido a Jerusalém para adorar, regressava e, sentado no seu carro, lia o profeta Isaías. Disse o Espírito a Filipe: Chega-te e ajunta-te a esse carro. E correndo Filipe, ouviu que lia o profeta Isaías, e disse: Entendes, porventura, o que estás lendo? Ele respondeu: Pois como poderei entender, se alguém não me ensinar? e rogou a Filipe que subisse e com ele se sentasse. (...) Então Filipe tomou a palavra e, começando por esta escritura, anunciou-lhe a Jesus.”

O texto diz muitas coisas interessantes, e o principal é: é bíblico o uso de interpretação bíblica. E numa interpretação há basicamente aquele que ensina e o que aprende. Aliás, essa prática, para não me acusarem de modernismo vem desde os tempos de Moisés como vemos em Neemias 8.1-12:

“Então todo o povo se ajuntou como um só homem, na praça diante da porta das águas; e disseram a Esdras, o escriba, que trouxesse o livro da lei de Moisés, que o Senhor tinha ordenado a Israel. (...)

E leu nela diante da praça que está fronteira à porta das águas, desde a alva até o meio-dia, na presença dos homens e das mulheres, e dos que podiam entender; e os ouvidos de todo o povo estavam atentos ao livro da lei. (...) Também Jesuá, Bani, Serebias, Jamim, Acube; Sabetai, Hodias, Maaséias, Quelita, Azarias, Jozabade, Hanã, Pelaías e os levitas explicavam ao povo a lei; e o povo estava em pé no seu lugar. Assim leram no livro, na lei de Deus, distintamente; e deram o sentido, de modo que se entendesse a leitura. (...) Então todo o povo se foi para comer e beber, e para enviar porções, e para fazer grande regozijo, porque tinha entendido as palavras que lhe foram referidas.”

Veja que a interpretação bíblica é usada tanto para dentro da igreja (edificar) como para fora (evangelizar). Ora, se não precisássemos de interpretação bíblica bastava um pregador chegar ao púlpito, ler a passagem bíblica e só. Todos, então, deveriam entender a passagem porque ela é clara. O pregador não poderia acrescentar qualquer palavra particular na leitura bíblica como “o texto diz isso” ou “o autor está querendo dizer que” ou “entendemos que o texto fala sobre”, porque isto já é interpretação bíblica.

O nome mais apropriado para interpretação bíblica é hermenêutica, que é uma ciência e/ou arte para interpretar a Bíblia, contendo princípios e regras para auxiliar o mestre a passar o sentido do texto. E hermenêutica não é só usado para textos bíblicos, mas muito comum na área do Direito, por exemplo.

A falta de hermenêutica pode ser perigosa na igreja. Historicamente temos uma lição importante quando Lutero deixou de aceitar a exclusiva interpretação de Roma e se baseou no princípio de hermenêutica: “O texto bíblico intertreta a si próprio”. Aliás, não fazemos isto hoje comumente? É tão normal este pensamento no meio evangélico, mas isto foi uma herança histórica. Biblicamente temos muitas lições, entre elas podemos destacar II Pedro 3.16:

“há pontos difíceis de entender, que os indoutos e inconstantes torcem, como o fazem também com as outras Escrituras, para sua própria perdição.”

Este versículo é importante porque nos fala que por haver ponto difíceis (a Bíblia não é clara em todas as partes!) há pessoas que não sabem que estão interpretando erroneamente a Bíblia e, por conseguinte, podem sofrer danos sérios. Isto é bíblico! Ora, não é vergonha moral assumir tal erro, mas não deixa de ser uma vergonha intelectual. Hermenêutica é uma atividade intelectual ou racional. Estamos lhe dando com idéias, significados, pensamentos contidos em palavras que precisam ser explicados (entendidos) às mentes de outros que querem aprender. Isto é uma atividade racional. Portanto quanto maior for o rigor no entendimento das palavras maior será a distância para um caminho de perdição como enfatizamos no texto de II Pedro. Portanto o rigor da interpretação tem a finalidade de trazer vida ao cristão e não uma discussão sem fim. O problema não é a interpretação é quem a manipula! Paulo adverte do zelo (oração, santidade, piedade) sem entendimento – que gera fanatismo – em Romanos 10.2,3:

“Porque lhes dou testemunho de que têm zelo por Deus, mas não com entendimento. Porquanto, não conhecendo a justiça de Deus, e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à justiça de Deus.”

Entendimento e hermenêutica são atividades intelectuais. Mas o ponto agora é: intelectualidade é bíblico? Vejamos cada uma das seguintes passagens: Salmos 32.8,9; I Coríntios 1.21; 9.20-22; II Coríntios 10.4,5; 5.7; Isaías 55.8,9.

Salmos 32.8,9: “Instruir-te-ei, e ensinar-te-ei o caminho que deves seguir; aconselhar-te-ei, tendo-te sob a minha vista. Não sejais como o cavalo, nem como a mula, que não têm entendimento, cuja boca precisa de cabresto e freio; de outra forma não se sujeitarão.”. Este texto realça a necessidade de o homem procurar entender as coisas de Deus reveladas. Mas quais são os meios? Por si só ou por alguém? Exclusivamente pela Bíblia ou não? Veremos.

I Coríntios 1.21: “Visto como na sabedoria de Deus o mundo pela sua sabedoria não conheceu a Deus, aprouve a Deus salvar pela loucura da pregação os que crêem.”. Este texto é comumente usado para defender que Deus rejeita a racionalidade na pregação (mensagem racional). Engraçado é que as pessoas comumente usam argumentos (recurso racional) para convencer as pessoas do Evangelho. Na verdade o que Paulo contrasta com a sabedoria humana é a revelação divina. É como se fosse um contraste entre a filosofia de Platão e o evangelho de Paulo e não um contraste entre a racionalidade dos homens e a mensagem do evangelho.

I Coríntios 9.20-22: “Fiz-me como judeu para os judeus, para ganhar os judeus; para os que estão debaixo da lei, como se estivesse eu debaixo da lei (embora debaixo da lei não esteja), para ganhar os que estão debaixo da lei; para os que estão sem lei, como se estivesse sem lei (não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo), para ganhar os que estão sem lei. Fiz-me como fraco para os fracos, para ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos, para por todos os meios chegar a salvar alguns.”. Paulo negou a sua fé por aprender e usar coisas “alheias” – num sentido espacial e não lógico – a fé em sua pregação, ensino e evangelização? Paulo teve que conhecer bem a filosofia grega para se “fazer” grego, a teologia judaica para se fazer judeu e a “ignorância” para ser simples ao falar com os fracos.

II Coríntios 10.4,5: “Porque, embora andando na carne, não militamos segundo a carne, pois as armas da nossa milícia não são carnais, mas poderosas em Deus, para demolição de fortalezas; derribando raciocínios e todo baluarte que se ergue contra o conhecimento de Deus, e levando cativo todo pensamento à obediência a Cristo”. A nossa guerra não é por força, mas por palavras. Estas são as nossas armas contra o conhecimento do mundo que se levanta contra o conhecimento de Deus, não contra qualquer conhecimento “do mundo”, porque este mesmo conhecimento pode ser usado – como Paulo fazia – para interpretação bíblica! Ora, a doutrina da Trindade não é uma afirmação bíblica, mas dedução – que se tornou bíblica – baseada em determinados fatos bíblicos. Neste caso, o texto bíblico está falando de algo teológico, mas não explicando. Livre-arbítrio não é um conceito bíblico, mas muitos entendem que deve está contido em várias doutrinas bíblicas. Isto é teologia!

II Coríntios 5.7: “porque andamos por fé, e não por vista”. O texto não diz que o contrário da fé é a razão, mas a visão. O grande problema em se entender mal esse texto é que as pessoas confundem inconcebível com irracional. Por exemplo, concebemos uma mula-sem-cabeça em nossa mente, mas sabemos ser uma fábula, porque racionalmente ela não pode existir. Mas há coisas que nos são inconcebíveis, mas não necessariamente irracionais como, por exemplo, tentar responder a seguinte pergunta: tirando os números pares de um conjunto infinito de números naturais estaremos tirando a metade de elementos do conjunto? Não podemos responder nem sim, nem são, porque não temos o conhecimento exaustivo de todo o fato do conjunto infinito. São classificações distintas como altura e peso.

Isaías 55.8,9: “Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos, diz o Senhor. Porque, assim como o céu é mais alto do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos”. O texto não está falando de racional humano X racional divino. O certo é que o texto bíblico está falando de algo filosófico, mas não explicando. Este algo filosófico seria a impossibilidade do finito – como o homem – compreender o infinito (inconcebível). A Bíblia fala de coisas filosóficas, mas não está interessada em explicá-las, porque este é o nosso objetivo com a nossa faculdade humana de entendimento. Ora, paradoxo e contradição são conceitos filosóficos úteis para se aceitar racionalmente – não quer dizer entender exaustivamente – a dupla natureza de Jesus e das três pessoas da Trindade – na verdade é melhor chamar de Triunidade.

Portanto, podemos dizer diante do exposto que:
• O cristão na falta de quem o ensina deve estudar a Bíblia. Portanto não deve se acomodar.
• Deus concede dons de ensino, de mestre e de sabedoria para uns e outros não. A igreja é um corpo. Portanto, se o cristão não tem aptidão (dons) em se aprofundar por si só nos conhecimentos de Deus, deve procurar alguém que o ensine. Deus não deu dons para serem desprezados.
• Conforme a necessidade (não por conveniência) pode se utilizar meios externos como filosofia e teologia para auxiliar na interpretação bíblica dentro ou fora da igreja. O problema é que nem todos estão preparados em aprender teologia e filosofia. A igreja é um corpo e alguns têm os dons necessários, portanto estes devem ser procurados.
• A Bíblia fala de assuntos filosóficos e teológicos, porém não explica. Um estudo bíblico pode ser estritamente bíblico (Bíblia) e amplamente bíblico (recursos teológicos e filosóficos junto com a Bíblia).
• A Bíblia é a fonte exclusiva da verdade de Deus para salvação do pecador. Não necessariamente a explicação. Transmiti-la – explicando – é papel nosso.
• Alguns, por não dominarem um determinado assunto, podem acabar deturpando o significado de uma doutrina bíblica e causando divisão, confusão e descrença quanto a determinados temas.

Intelectualidade não precisaria ser algo bíblico, mas como o homem pecaminoso pode se comportar como um animal irracional, então Deus graciosamente revelou o que também é humano para o homem em sua Revelação.

“Toda Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir em justiça; para que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente preparado para toda boa obra.” [2 Tm 3.16,17]

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