A Praga do Legalismo

O que é o legalismo? Certamente já ouvimos muito falar sobre isto. Alguns sabem exatamente o que é através de exemplos ou casos práticos em sua vida, mesmo sem poder defini-lo. Essa praga que em muito distorce o cristianismo está em todos os cantos de todas as igrejas cristãs. É uma praga. Mas por quê existe isto em nosso meio (cristão)? 

I
Antes de entrarmos a fundo na questão do legalismo devemos entender o nascimento de tal tendência. Uma explicação é que o legalismo nasce da nossa falta de maturidade na prática cristã. Ou em outras palavras, queremos que a nossa prática cristã ou todas as atividades que nos rodeiam sejam como uma moeda. Ela tem dois e somente dois lados. Quer dizer, queremos que tudo já esteja pré-classificado em certo e errado, em virtude ou pecado. Queremos colocar todas as atividades possíveis de nossa vida num guia prático de virtudes e pecados, contudo não é errado querer saber se o que estou fazendo é pecado ou não, errado ou não. O erro está em tornar a vida simplista. Fazer do homem uma mula com cabresto. 

Podemos clarear mais isto com o exemplo do comer carne dada aos ídolos pagãos vendidas no mercado público (ver I Co 8). Onde o apóstolo Paulo se deparou com uma situação que não podia fazer o que um grupo queria: classificar moralmente o comer a carne dada aos ídolos, isto é, dizer se estava errado ou não comer essa carne. Isto porque este grupo que estava em dúvida (Paulo os chamam de “fracos” pois suas consciências eram “fracas”, versículo 7) percebeu que havia outro grupo de pessoas que comiam tais carnes sabendo que não estavam pecando (Paulo chamava estes de “dotados de saber”, versículo 10). Os dotados de saber não achavam: tinham plena convicção de que não estavam pecando. O problema é que quando os fracos iam fazer a mesma coisa que os dotados de saber achavam que estavam de forma indireta adorando aos ídolos pagãos. Estes não tinham plena convicção do que estavam fazendo e assim acabavam pecando.

É mais fácil se orientar por um guia de pecados e virtudes do que procurar maturidade espiritual.

As respostas de Paulo são fantásticas! Primeiro ele concorda com os “fortes” no ponto em que o comer tal carne não tem problema. Basta olharmos os versículos 4 a 6. Portanto a convicção deles estavam solidificados na Palavra. Contudo ele condena a falta de amor dos “fortes” para com os “fracos”, porque deveriam limitar sua liberdade por consideração da consciência do outro. E se assim não fazem acabam pecando é contra Cristo como mostram os últimos dois versículos (12 e 13).

Veja que estamos diante de uma situação complexa. Porque Paulo não poderia de antemão classificar o comer tal carne como pecado como queriam os fracos de consciência, porque o pecado não residia na carne, porém nascia por causa de outra coisa. E assim que podemos falar sobre o princípio do pecado, definido pelo próprio Paulo em Romanos 14.23. Paulo apenas utilizou este princípio bíblico para resolver uma questão não catalogada. Tal atividade não estava no guia de pecados e virtudes. 

Portanto, o pecado pode não estar localizado no que fazemos, mas, em vez disso, no fato de cometermos um ato que acreditamos ser mau. (O mesmo não vale necessariamente para a prática de algo que acreditamos ser bom!) Isto é, estamos diante do princípio bíblico de que tudo o que não provém de fé é pecado. Exemplos: uma mulher que é disciplinada a crer que usar batom é pecado pode chegar a pecar um dia se usar o batom, porque cometeu um ato que acreditava ser mau. O mesmo acontece para alguém ao comer um acarajé e ter dúvidas.

II
Outro fator contribuinte para uma tendência legalista é a falta de entendimento do princípio do complexo da justiça e do complexo do pecado. Isto é, o pecado não está de um lado da moeda e a virtude do outro lado da moeda. Há uma continuidade entre a virtude e o pecado. Quando me aproximo do pecado estou pecando, quando me aproximo da virtude estou fazendo justiça. São lados opostos separados por um caminho nebuloso entre eles. A direção de nosso caminhar é que vai dizer em qual caminho já estamos.

Ela está bem definida no Sermão do Monte (ver Mateus 5.1-28). Muitos passam por esta passagem e não entendem a ligação entre as bem-aventuranças e uma interpretação completa das leis ligadas, por exemplo, ao assassinato (21 e 22) e ao adultério (27 e 28). Jesus aplicou esse princípio da continuidade no caso do adultério e do assassinato. Ele estava corrigindo uma visão simplista da lei de Deus. Os judeus achavam que cumprindo o que estava listado estavam cumprindo os mandamentos de Deus. 

Não é assim que também pensamos? “Não matei, não roubei, não faço mal a ninguém, logo não tenho que me preocupar com nada, inclusive Deus”. Contudo, quando Jesus antes fala as bem-aventuranças procurar mostrar que o nosso estado também é levado em conta assim como o nosso ato. Adultério significa todo o complexo ou caminho que envolve tal pecado, desde a cobiça, o seu estado, ao ato consumado. “Não matarás” significa mais do que evitar o homicídio, implica promover a virtude oposta. “Não matarás” é promover a vida, logo se você nunca matou ninguém, entretanto não promove a vida então na verdade você ofende a Deus como se estivesse matando alguém ou aos outros.

Um exemplo clássico disso é a passagem do jovem rico (Marcos 10.18). A conclusão popular é que a passagem fala do amor a riqueza acima de tudo. Isto é na verdade uma aplicação prática do princípio do complexo da justiça e do complexo do pecado. 

O jovem havia abraçado uma visão simplista da lei de Deus: bastava cumprir o que lhe haviam ensinado. E olha que ele cumpria. Porém o jovem tinha uma visão superficial de bondade: cumprir o que estava listado. Jesus refuta tal idéia quando aponta como referencial de bondade apenas Deus e não qualquer homem. Jesus não negou sua divindade, mas como o jovem achava que os homens eram bons por seguirem um guia de virtudes e pecados e pensava que Jesus era o maior exemplo neste caso, então primeiro mostrou a verdadeira referência de bondade e segundo a vida pecaminosa do jovem. Na verdade o jovem não cumpria os mandamentos de Deus, ele obedecia às dimensões claras da lei por conveniência com base na sua visão superficial de bondade. 

Sua “obediência” a Deus desapareceu quando a lei conflitou com seus desejos próprios, nesse caso o amor à riqueza. O cristianismo se torna opressão em vez de libertação quando o cristão não sabe viver de forma sadia e madura sem um guia de virtudes e pecados.

Comentários

Aislan Fernandes disse…
Texto revisado e corrigido.

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