Fé equilibrada através da honestidade e da razão

É tão difícil entender os outros, principalmente quando alguém relata uma experiência "sobrenatural" como se cobrando uma postura dualista de quem escuta: foi verdadeiro ou não? E assim você é constrangido a se colocar simplesmente como incrédulo ou não, sem meio termo, como se tal posição não existisse. Porém, nesse momento, é possível responder com uma fé equilibrada através da honestidade e da razão.


Certa vez estava numa lanchonete e duas amigas chegaram relatando uma "experiênchonia com Deus". Elas estavam bem agitadas e alegres, dizendo que durante o culto um querubim apareceu tocando uma trombeta fazendo com que todos ficassem rindo sem parar durante quase uma hora. Após o relato, havia no ar uma expectativa da minha opinião, como se um julgamento da experiência fosse também da minha fé cristã: "Você também não é crente?".

Para piorar, outras milhares de pessoas também embarcaram nesse movimento, que parece ter começado nos EUA:


O que dizer diante de um relato ou movimento assim? Simplesmente verdadeiro ou falso? O quanto é verdadeiro ou falso? O quanto é possível a fé e a razão? 

Um caminho sadio talvez seja através da honestidade e do conhecimento. A honestidade em reconhecer a dúvida por não ter entendimento suficiente e não necessariamente exaustivo. E o conhecimento para entender melhor certos fenômenos com o que já temos disponível nas ciências (exatas, humanas e da religião). 

Exemplo da aplicação do conhecimento é a contestação bíblica desse movimento em igrejas cristãs por cristãos, como no caso do blog O Bereano: A "Unção do Riso".

Aliás, a razão nunca deixou de ser uma característica da fé. Essa distorção, que se tornou popular, foi herança de filosofias e teologias passadas, como muito bem colocado por Francis Schaeffer:
"A Morte da Razão" de Francis Schaeffer
Um caso de aplicação de honestidade talvez seja uma experiência pessoal minha, vivida tempos atrás, ainda no início, numa fé infantil, frágil e muito dependente da confiança nos outros.
Nessa experiência, durante uma vigília, numa comunidade cristã pequena, que um amigo frequentava e convidou a participar, falei em "línguas estranhas" e também "cai no Espírito". Isso no meio pentecostal é conhecido como o primeiro dom de Deus para o batismo no Espírito Santo. Às testemunhas ali presentes foi uma experiência edificante para a fé de todos, exceto para a minha.
É tão difícil entender os outros quanto a si mesmo, no entanto com uma diferença crucial: você é o único a permitir rever sua própria experiência, se for honesto consigo mesmo.

Uma amostra do que experimentei segue no início deste vídeo:


Na verdade, esse vídeo é apenas a parte 2 de uma crítica contendo também aquela mesma aplicação do conhecimento.
Nos dias seguintes, estava muito triste e envergonhado, pois lembrava perfeitamente como o pastor havia dito bem baixinho perto do meu ouvido: "faça como eu". O mundo ali desabou, porém o constrangimento, a exaltação do momento, o desejo de querer muito algo (experimentar um "nível espiritual" maior), a infantilidade na fé (imaturidade espiritual), o pouco conhecimento bíblico (a respeito do próprio dom de línguas), entre outros fatores, não me permitiram fazer um julgamento adequado. Nisso fui forçado a ter uma posição dualista para manter uma fé perante os outros, ignorando a razão e a própria honestidade, por um tempo.

Por isso entendo perfeitamente a revolta de muitos contra os religiosos, porém teólogos cristãos como John Stott já mostravam sua preocupação quanto a falta de um cristianismo equilibrado:
"uma das maiores fraquezas que os cristãos (especialmente os evangélicos) manifestam é a tendência para o extremismo ou desequilíbrio".
Graças a Deus, passou essa crise pessoal na fé cristã compreendendo melhor o misticismo existente dentro da igreja cristã (não no cristianismo bíblico): línguas estranhas, palavras de poder (confissão positiva), objetos com maldição e bençãos, maldição hereditária, teologia da prosperidade, batalha espiritual etc.

Sim! Graças a Deus! Não vendo toda a complexidade de eventos envolvidos no processo de libertação dessas distorções, atribui logicamente a Deus o mérito por essa salvação, com base em tudo que foi aprendido nas ciências e teologias. A fé foi aplicada como oposição à visão sem excluir a razão, assim como nas contestações que utilizam a hermenêutica bíblica.

Também é tão difícil entender os outros, especialmente de outras religiões, quando relatam experiências tão "sobrenaturais" quanto os da sua crença. E assim, da mesma forma como dentro do cristianismo, você é constrangido a se colocar como irmão ou superior: tão verdadeiro quanto o seu ou não. Todavia nessa situação, é possível responder com uma fé equilibrada através da honestidade e da razão.

Muitas pessoas julgam as críticas inter-religiosas (discussões entre religiões diferentes) como demonstrações de superioridade, racismo ou radicalismo, como se não quissessem conviver juntos tolerando as diferenças, porém tal impressão geralmente é fruto simplesmente da falta de conhecimento dessas diferenças ou dos pré-conceitos envolvidos nos debates.

O espiritismo, por exemplo, surgiu, pelo menos em Allan Kardec, com várias críticas à fé cristã por considerá-la cega. No entanto, as bases de sua força (cientificidade e racionalidade) hoje são suas maiores fraquezas. Exemplo disso, no Brasil, são as obras psicografadas de Chico Xavier contestadas pelo próprio amigo que trabalhou junto com ele 10 anos, Waldo Vieira. Segue vídeo do relato dele:


“Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará” (Kardec, A Gênese, capítulo I, item 55).
Um dos textos bíblicos mais usados para atestar a pluralidade dos mundos habitados, um dos postulados da Doutrina Espírita, é exatamente uma interpretação sem considerar seu contexto: “Na casa de meu Pai há muitas moradas” (João 14:2). Bastaria ler o capítulo inteiro desse versículo para entender o sentido de "morada", além do problema de estar ali presente o mesmo Cristo, pedra angular do cristianismo criticado.
Não há meio termo, naturalmente um precisa estar errado para o outro estar certo, pois "se Cristo não ressuscitou, logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé." (1 Coríntios 15:14).
Enfim, não é fácil simplesmente responder: "não sei nada sobre isso"; "não entendo ainda essas coisas"; "de fato, você parece que está certo, vou aprender mais a respeito" etc. E isso ocorre não só por falta de conhecimento, porém de prioridade por causa do corre corre do dia a dia. 

Se não é possível responder com conhecimento (rejeitar ou aceitar), pelo menos tenta ser honesto em mostrar dúvida, contudo sem cair na preguiça, "examinando cada dia nas Escrituras se estas coisas eram assim" (Atos 17.11).

Exemplo disso é o testemunho seguinte:

"O espiritismo novelístico é muito distante do espiritismo real. O induzimento a conversar com os mortos causa um certo peso em nossas vidas. Você é estimulado a procurar parentes ou mentores mortos e começa uma vida em um mundo paralelo…com o tempo isso fica tão pesado que eu poderia dizer que entramos em uma certa “paranóia”. Só vivendo isso para saber até onde isso nos leva (não desejo isso pra ninguém)." - Rafaella

Também não é fácil reconhecer ter vivido certas experiências ou crenças (parte) em vão.

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