Humildade

O que é humildade? Aonde podemos encontrá-la? Por que, nos dias de hoje, é tão incomum percebê-la nas pessoas?


Não é difícil perceber o quanto a humildade foi banida da humanidade, não apenas por causa do orgulho mas pela confusão em torno de seus extremos e de suas distorções. Não é à toa a declaração do poeta Samuel Taylor Coleridge: O "pecado mais apreciado pelo diabo é o orgulho que imita a humildade".

Quanto menor o conhecimento das coisas, especialmente dos outros, maior o orgulho, pois é preciso "amar a verdade mais que a si mesmo", ou melhor, o "contrário da humildade é o orgulho, e todo orgulho é ignorância" [2]. E nesse princípio, religiosos de diferentes crenças e ateus são todos iguais. Um julga as ações do próximo sem pelo menos entender as premissas de seu pensamento e o outro nem sequer considera seus conhecimentos solidificados sob axiomas.

Quanto aos religiosos, especialmente ao cristianismo, (começando com os "de dentro", antes de falar dos outros), John Stott [1] já denunciava que "uma das maiores fraquezas que os cristãos (especialmente os evangélicos) manifestam era a tendência para o extremismo ou desequilíbrio”, exemplificando da seguinte forma: "alguns crentes são tão friamente intelectuais que se questiona serem eles mamíferos de sangue quente, para não dizer seres humanos, ao passo que outros são tão emocionais que se deseja saber se são possuidores de uma  porção mínima de massa cinzenta”. Quanto a esse último aspecto, é possível perceber a falta de maturidade espiritual, quando hipervalorizam a experiência em detrimento da verdade (criando uma espécie de misticismo popular cristão) e geram um comportamento de antiintelectualismo (um tipo de aversão à sabedoria ou ao conhecimento) aos seus críticos. E assim, tornam-se escravos de uma soberba incapazes de combater: não entendendo que “com os humildes está a sabedoria” (Provérbios 11:2).

De forma semelhante, numa situação fora do contexto religioso, uma das maiores dificuldades durante o luto, além do sofrimento, é não saber (re)conhecer a dor de modo a "viver a morte" de forma mais digna, sem culpa ou vergonha, deixando assim, o tempo efetivamente curar em vez de cair num caminho, muitas vezes, sem volta como o da "viúva negra", por causa da soberba em não querer identificar os próprios pré-conceitos ou a própria condição de ser humano.

Humildade é um "reconhecimento de tudo o que não somos", a "virtude do homem que sabe não ser Deus", "um saber antes de ser uma virtude", um conhecer-se adequadamente [2] ou o "conhece-te a ti mesmo" (muito citado pelo filósofo Platão). Quanto à etimologia, certas palavras são utilizadas como sinônimos dela. No latim, por exemplo, há a palavra "humus" usado como terra, chão, solo; no hebraico, "anavah" como humildade, brandura; no grego, "tapeinos" como modesto, humilde; e nosso dicionário coloca humildade também como modéstia, submissão, pobreza, sujeição e simplicidade. No entanto, muitas dessas palavras podem conter um sentido bem diferente em função do contexto em que são aplicadas. Nesse sentido, é preciso distinguir seu real sentido, conhecendo melhor seus extremos e suas distorções. 

Quanto aos extremos, o "excesso" de humildade é a baixeza assim como sua falta é o orgulho [2]. Essa pequenez (baixeza) é a atitude da "falsa humildade", pois se "priva daquilo de que se é digno" ou evita uma ação elevada por acreditar ser incapaz. Já a soberba (orgulho) é a atitude de julgar-se autosuficiente ou completo em conhecimento, poder, riqueza, saúde, honra, justiça própria, entre outros e não o acúmulo (demasiado) de conhecimento ou sabedoria; é ignorar conhecer-se adequadamente. Evitar julgar o próximo, mesmo com conhecimento adequado, é sinal de baixeza.

 
Com relação a esse acúmulo de conhecimento, a pequenez também está relacionada com a magnanimidade (grandeza), aliás, é também a falta dela, assim como o excesso é a vaidade. Isso foi bem vivido pelo apóstolo Paulo: "E, para que não me ensoberbecesse com a grandeza das revelações, foi-me posto um espinho na carne, mensageiro de Satanás, para me esbofetear, a fim de que não me exalte." (2 Coríntios 12:7). Portanto, não era o volume de conhecimento a causa da soberba, porém o excesso de grandeza (vaidade). 
 

Não é de se admirar a grande falta de conhecimento, bíblico e teológico, de muitos evangélicos, porque cresceram sob o paradigma do "perigo do conhecimento humano". Esse absurdo é semelhante ao governo que proíbe a produção de facas por causa do aumento de homicídios por esfaqueamento. Muitas igrejas, ou mesmo, outras religiões fazem desse mesmo jeito para proteger a consciência ou alegria de seus fiéis, todavia "mais vale uma verdadeira tristeza do que uma falsa alegria", "mais vale se depreciar do que se enganar" [2].

Uma distorção comum da humildade é confudi-la com a simplicidade, que "é o contrário da duplicidade, da complexidade, da pretensão", mas não simploriedade ou falta de inteligência. Aliás, inteligência não é congestionamento, complicação ou esnobismo; "é a arte de reduzir o mais complexo ao mais simples"; é ter o "desinteresse, desprendimento, desprezo de provar, de prevalecer, de parecer"; é "despreocupada, mas não descuidada"; é o contrário do amor próprio, do narcisismo, da autosuficiência; é "antes a infância como virtude" [2], semelhante ao conselho de Paulo: “Sede meninos na malícia, mas adultos no entendimento” (I Coríntios 14:20). 

"Qualquer virtude, sem a simplicidade, é pois pervertida", ou melhor, é "a verdade das virtudes e a desculpa dos defeitos. É a graça dos santos e o encantos dos pecadores", pois torna os defeitos mais suportáveis ou sedutores, porém não justificáveis ou desculpáveis. Logo, coragem apenas em público não é coragem, contudo exibicionismo, assim como covarde exibido, egoísta hipócrita, imbecil pretensioso, bonitão vazio (bancando o romântico) são insuportáveis, todavia o simplesmente egoísta, o simplesmente infiel ou o simplesmente covarde não impedem de serem simpáticos ou sedutores [2].

É compreensível a lógica de quanto maior a humildade maior o ateísmo, pois se ela é o reconhecimento de si e o máximo do conhecimento do ser humano leva ao reconhecimento de sua miséria, pequenez, de seu nada, então Deus não criaria um ser tão miserável, logo Ele não poderia ter criado um ser humano assim como conhecemos hoje em dia. Portanto, nesse raciocínio, à medida que nos descobrimos mais, compreendemos que não podemos ter sido criados por Ele. Isso faz todo sentido, sem considerar, pelo menos, a premissa bíblica da queda do homem, que nem sempre foi assim (decaída), desde a sua concepção. 

Na verdade, a natureza atual é apenas uma etapa prevista (necessária?), logo transitória, do que viria a ser. Paulo, inclusive, fala em "corpo terreno" antecedendo um "corpo celestial": "o primeiro homem, Adão, tornou-se alma vivente; o último Adão, espírito vivificante. Mas não é primeiro o espiritual, senão o natural; depois o espiritual. O primeiro homem, sendo da terra, é terreno; o segundo homem é do céu" (I Coríntios 15:45-47). Logo, o "pecado original" foi apenas um marco dessa etapa, porém um indicativo de grande valor para informar a decadência atualmente visível não como originada da criação, contudo de um evento posterior. Nesse sentido, quanto maior a humildade maior a fé em Deus e Paulo sabia bem isso ao dizer: “Miserável homem que sou” (Romanos 7:24).


A parábola do fariseu e do publicano, contada por Jesus, é um dos textos mais usados para ensinar sobre humildade e soberba:

"E disse também esta parábola a uns que confiavam em si mesmos, crendo que eram justos, e desprezavam os outros: Dois homens subiram ao templo, para orar; um, fariseu, e o outro, publicano. O fariseu, estando em pé, orava consigo desta maneira: O Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros; nem ainda como este publicano. Jejuo duas vezes na semana, e dou os dízimos de tudo quanto possuo. O publicano, porém, estando em pé, de longe, nem ainda queria levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: O Deus, tem misericórdia de mim, pecador! Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque qualquer que a si mesmo se exalta será humilhado, e qualquer que a si mesmo se humilha será exaltado" (Lucas 18:9-14).

É comum o entendimento de um problema de comportamento, de atitude ou postura: "Mostra-nos, então, na atitude do fariseu, tido e havido como o tipo acabado do crente ortodoxo, até onde pode chegar a soberbia humana. Já na postura que assume - ereto, tórax saliente - patenteia seu orgulho. Ora, mas suas palavras são uma seqüência de arrogância e presunção" [4].

O erro maior ou fundamental, no entanto, se encontra na própria introdução: "a uns que confiavam em si mesmos, crendo que eram justos". Essa era a exaltação da qual Jesus se referia. Ele não estava combatendo qualquer tipo de exaltação, porém a confiança na justiça própria. Essa forma de justiça tem várias formas ou manifestações na prática.

"No primeiro século, havia alguns mestres em Colossos chamados gnósticos. Eles afirmavam que era possível atingir-se uma perfeição superior à capacidade dos cristãos comuns por meio de um conhecimento especial (gnosis) bem como pela observância da circuncisão judaica, dos dias de festas, das luas novas e dos sábados. Ensinavam que a observância desses rituais propiciava uma especial comunhão com os anjos. O argumento deles era que, como os anjos estão acima das coisas deste mundo, o asceta, divorciando-se das coisas deste mundo, fica mais perto dos anjos e está, portanto, habilitado a se associar com eles" [3]. Esses gnósticos não eram conhecidos por qualquer tipo de exaltação ou soberba, pois eram até bem zelosos em suas boas ações, porém no fundamento de suas crenças havia a implicação da insuficiência de Jesus Cristo como Salvador. Isto é, essa evolução espiritual se devia às práticas deles, mesmo tendo Jesus como um exemplo maior. Por isso, Paulo argumentou que preceitos e tradições humanas não tinham valor para a santificação ou salvação, e pior, mostrou que essas formas de falsa sabedoria tentavam substituir o papel de Cristo [3]: "Ninguém se faça árbitro contra vós outros, pretextando a humildade e culto dos anjos, baseando-se em visões (...). As quais têm, na verdade, alguma aparência de sabedoria, em devoção voluntária, humildade, e em disciplina do corpo, mas não são de valor algum senão para a satisfação da carne (Colossenses 2:16, 23). Portanto, a exaltação em si não era má, mesmo porque no fim os humildes seriam exaltados.

O mal do fariseu residia essencialmente em sua crença, a de "confiavam em si mesmos, crendo que eram justos", cujo comportamento era apenas uma consequencia natural de tal religiosidade. Seu erro estava em não aplicar na vida prática a seguinte declaração de um de seus principais profetas: "Somos como o impuro - todos nós! Todos os nossos atos de justiça são como trapo imundo" (Isaías 64:6). Por isso, quem confia em sua própria justiça, esperando alcançar um futuro melhor, uma evolução, transformação, salvação, misericórdia, cura, milagre ou favor da parte de Deus, está se enganando, pois falha em ver que está na mesma condição miserável daquele que despreza ou que é "inferior", precisando tanto quanto este da graça e misericórdia soberanas de Deus [5].

Esse fariseu é como um atleta, que ganhou próteses numa doação para suprir as necessidades das pernas perdidas num acidente, que discursou da seguinte forma ao receber o prêmio de primeiro lugar numa corrida: "Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, fracos, imperfeitos e perdedores. Corro duas vezes mais que os outros, e dou o máximo de tudo quanto possuo". De fato, ninguém correu no lugar dele nem Deus, porém concluiu que o mérito de sua diferença em relação aos outros se dava pelos seus próprios esforços. 


Da mesma forma, muitos e muitas crenças foram e são assim hoje: rosa ungida, água fluidificada, passe, culto de curas e milagres, oração do poder, palavras de poder, guarda do sábado, quebra de maldições, corrente dos 300, entre outras similares, que no fim colocam Deus numa posição de devedor diante de seus credores, que aguardam ou esperam, acreditando por merecimento (obrigatoriamente, caso contrário, Deus seria injusto), as recompensas pelos seus esforços, como se não tivessem próteses.

As próteses de Deus são várias: a fé, o arrependimento, a saúde, a sabedoria, a justiça, a bondade, a força, a santidade, o crescimento, a salvação, maior grau espiritual, enfim, "toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não há mudança nem sombra de variação" (Tiago 1:17).

É impossível encontrar a humildade, quando não se enxerga a verdade da própria miséria humana e da justiça da fé em Cristo através do amor santo de Deus.

Referências

[1] John Stott. Cristianismo Equilibrado.
[2] André Comte-Sponville. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes.
[3] John Edmund Haggai. A Falsa Humildade!
[4] Rodolfo Calligaris. Parábola do Fariseu e do Publicano.
[5] Vincent Cheung. As Parábolas de Jesus.

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