Alguns apontamentos sobre conhecimentos míticos, religiosos, filosóficos e científicos

Este mês particularmente tive um contato, um pouco incômodo, com explanações sobre os conhecimentos míticos, religiosos, filosóficos e científicos. Primeiro numa disciplina de metodologia da pesquisa científica, em uma especialização de Engenharia e Arquitetura de Software. Depois numa aula de Ética, em um curso de graduação em Filosofia. Então, para organizar esse incômodo, fiz alguns apontamentos, em cima de dessas explanações (resumidas nos dois primeiros apontamentos).

1. É colocada uma separação crono-lógica, entre os conhecimentos míticos (populares), religiosos (teológicos), filosóficos e científicos, a qual seriam como etapas para se chegar à verdade, primeiro o mito, por fim, a verdade (científica). Isso baseado num olhar histórico, do qual o monoteísmo teria surgido do politeísmo, assim como a filosofia da ruptura dos mitos, iluminando (libertando) o homem em meio a uma confusão de conhecimentos míticos ou dogmáticos. A diversidade religiosa de hoje, por exemplo, cada vez mais crescente, seria uma repetição dessa confusão antiga, pela ausência de um conhecimento filosófico ou até científico.

2. É colocado o conhecimento mítico ou religioso como fundamentado não em argumentações, mas em dogmas, gostos ou fé (crenças). Nele a crença ou o mito existiria mesmo com evidências apontando o contrário. Não permitiria revisões mediante reflexão ou experimentos (não haveria diálogos aqui). Seriam "verdades" nas quais as pessoas chegariam não com auxílio de sua inteligência, pois teriam sido reveladas pelo sobrenatural, logo infalíveis, indiscutíveis e exatas. Assim suas evidências não seriam verificadas, pois sempre estaria implícita uma atitude de fé diante de um conhecimento revelado.

3. No entanto, nem todos os historiadores concordam com a tese do monoteísmo como resultado do politeísmo (isso até se tornou dogma em certas comunidades acadêmicas). Na verdade, há a tese, em debate na academia, de que esse (politeísmo) seria uma degradação daquele (monoteísmo), assim como notas falsas, das mais variadas formas, seriam uma corrupção de uma nota verdadeira. Aliás, pela própria ciência da História, diferente do monoteísmo original, recuperável basicamente pela Arqueologia, é verificável constatar a grande variedade, por exemplo, das denominações cristãs (e outra religiões também), como rupturas acidentais ou degradações de certos pontos doutrinários, mesmo havendo alegações de inspirações fantásticas ou sobrenaturais. Mas esse apontamento não é para finalizar o assunto, porém evidenciar o perigo para o dogmatismo em determinações colocações.

4. A fé não é uma oposição à razão, mas à visão, mesmo que alguns sejam praticantes de uma "fé cega" (fé irracional), o que é passível de acontecer (por ignorância ou acidente), assim como a fé racional. Para isso, dentro da teologia protestante, basta inicialmente uma lida das obras "Crer é também Pensar" de John Stott e "A morte da razão" de Francis Schaeffer, para notar como a teologia e a prática moral cristã diária não devem ser construídas em cima de dogmas, principalmente irracionais. Por outro lado, uma fé não é cega por não haver uma demonstração ou comprovação científica, pois nem tudo pode ser deduzido, pois nas ciências sempre haverá axiomas, que nunca foram deduzidos, mas assumidos sem prova. Novamente, isso não encerra o assunto, abre possibilidades para enxergar "novos" grupos (nem todos são dogmáticos). Inclusive na história da teologia cristã, por exemplo, houve uma transição da Dogmática para teologias sistemáticas de diferentes autores. Ora, a Hermenêutica (filha da Retórica) é uma ferramenta racional muito usada na teologia para a (crítica da) interpretação de textos bíblicos.

5. Aliás, nem mesmo a revelação cristã foi recebida fora de um contexto histórico-cultural. Por isso, a importância do debate racional e lógico para o aperfeiçoamento de suas teologias e interpretações. Augustus Nicodemus, por exemplo, em seu livro "A Bíblia e seus intérpretes - uma breve história da interpretação", colocada a “divindade e a humanidade das Escrituras” na linguagem de acomodação. Essa linguagem seria a expressão pelos autores bíblicos “nos termos e dentro do conhecimento disponível naquela época, acomodando a verdade revelada em termos do que sabiam do mundo”. Assim, ele explica: no “livro de Levítico, se diz que a lebre rumina e que o morcego é uma ave. Sabemos que pelos padrões científicos atuais lebre não ruminam e morcegos não são aves”, justificando que do ponto de vista do observador “todos os animais que mexem com a boca após comer parecem ruminantes e tudo que tem asas e voa parece ave!”. Note, nem todo conhecimento su/e-ficiente precisa ser exaustivo para um determinado fim.

6. Thomas Kuhn, em sua obra divisora, dentro das ciências, "A Estrutura das Revoluções Científicas", dá ótimos exemplos de como o dogmatismo forçou revoluções, para haver de fato progressos nas ciências, em várias áreas de conhecimento. Isso é um exemplo para evidenciar o caráter social do dogmatismo, não como algo exclusivo das religiões. Havia cientificidade na Grécia antiga? Battista Mondin, na introdução de sua obra "Curso de Filosofia - Volume 1", mostra o mito (o "mito-verdade") como "uma representação fantasiosa que pretende exprimir uma verdade" (pretensão teórica), "a fim de dar interpretação e explicação aos fenômenos da natureza e da vida". Ora, Thomas Kuhn também exemplifica vários mitos dentro das revoluções científicas, principalmente na evolução de fenômenos físicos. É o mito uma mera fase primitiva da humanidade?

7. Battista Mondin descreve a filosofia como um conhecimento distinto, por conter método (da justificação racional) e objetivo (o conhecimento), e não por conter simplesmente argumentação. Aliás, a retórica é uma arte e ciência da argumentação, por elementos afetivos e racionais, não tendo nem sofismo nem demonstração, precisa como a matemática, como bem explana Olivier Reboul em sua obra "Introdução à Retórica". Thomas Kuhn confirma exemplos de comunidades científicas levadas pela satisfação do grupo e não necessariamente pela razão dos argumentos.

8. Ora, o que fazer com o dogma? Qual a razão de sua manutenção? Fraqueza de críticas ou imposição de seus defensores? Ou ambos? Como algumas teorias científicas desapareceram no tempo? Aqui estaria uma explicação plausível de como os dogmas desaparecem (leia Thomas Kuhn). Mas a multiplicidade de grupos divergentes sobre algum conhecimento é necessariamente reflexo de falta de argumentação e/ou da liberdade social humana? Nem sempre as pessoas estão interessadas em ir até o fim em seus diálogos (quando há!), e cada um acaba seguindo seu próprio caminho, com ou sem apoio de outros. Desistir então e/ou generalizar tudo?

9. É preciso organizar as expectativas nos diferentes tipos de conhecimentos: míticos, religiosos, teológicos, filosóficos e científicos. A satisfação que cada um pode oferecer pode ter um objetivo bem diferente, e não é por serem conhecimentos que devemos esperar a explicação das mesmas coisas. Um busca explicar espiritualmente as coisas, e outro, biologicamente, e assim por diante. Às vezes há conflitos, porém generalizar só colocar a sujeira debaixo do tapete. Esse apontamento quer também incentivar a pesquisa, o desenvolvimento da própria convicção, em cada assunto particular.

10. Particularmente se eu não acreditasse numa teologia isenta de dogmas não estaria desenvolvendo um projeto em antropologia teológica para romper com conceitos tradicionais há mais de 2.000 anos, porque o tempo atual permite tal ruptura.

Por isso o incômodo, não por um possível conflito pessoal com essas colocações, mas pela pobreza histórica, lógica e prática delas.

Bem, foram apontamentos organizados na manhã de hoje, para posterior e oportuna reconsideração.

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