Entendendo Diferenças Religiosas - I

O foco aqui não será mostrar qual visão religiosa é a mais verdadeira – apesar de eu crer em uma como verdadeira em pontos cruciais da fé – mas colocar em questão como os pressupostos estão interligados na definição de uma prática.

Também fazer uma comparação entre as diferentes cosmovisões religiosas mostrando onde são comuns e distintas, explícita e implicitamente. Ora, podemos encontrar diferentes crenças que apresentam alguns aspectos em comum, já outros são totalmente excludentes apesar se usarem até as mesmas palavras.

1. Cosmovisão

Ter consciência de sua própria cosmovisão – uma séria de crenças sobre os assuntos mais importantes da vida – é importante para o auto-conhecimento e o entendimento de outras crenças. Em cada cosmovisão está implícito um esquema, um padrão ou conjunto de idéias pelo qual usamos para interpretar ou julgar a realidade. O resultado da nossa interpretação ou julgamento da realidade determina como será a nossa reação perante essa realidade.

Se fôssemos fazer uma analogia a cosmovisão seriam os óculos. Alguns, portanto, conseguem enxergar melhor os acontecimentos do que outros e outras não conseguem nem ver o óbvio.
Conforme o tipo de reação, a pessoa pode vir a ter conseqüências pelo resto da vida ou não. Isto é, ela reage conforme acredita ser o certo, mas as conseqüências num futuro desconhecido podem ser desastrosas.

A forma como alguém encara ou combate uma força que acredita ser maligna e sobrenatural advém de sua cosmovisão. Esta vai definir como cada ação deve ser encarada, tratada, com sucesso ou com falha, quais ferramentas utilizar, qual ritual fazer, a quem recorrer, etc.

2. Paradigma

Depois de reconhecida a própria cosmovisão, a pessoa pode pensar na possibilidade de rever a própria crença ou considerar outra como verdadeira (também), de modo a não ficar presa a um paradigma. Quando estamos acostumados ou só conhecemos uma forma de interpretar ou de julgar uma realidade, inclusive as conseqüências quando reagimos a essa realidade, pensamos ser essa interpretação ou julgamento a única a ser levada em conta ou aquela realmente verdadeira.

Podemos vivenciar uma prática em nosso meio tão comum e normal que mesmo não sabendo mais as razões de viver assim continuamos a perpetuar essa prática, inclusive é dessa forma como ocorre o nascimento de paradigmas. Essa normalidade do meio então vira uma força invisível que nos prender a fazer algo que não sabemos exatamente a razão.

3. Problema de Comunicação

Vivemos um tempo de muita intolerância religiosa. Mas muitas das causas para isso é a ignorância dos pressupostos da crença do outro. Por exemplo, o inferno na concepção protestante é uma tremenda injustiça para um espírita, por condenar à eternidade alguém que viveu poucos anos, já a concepção espírita para um protestante é herética, porque não leva em conta o pecado cometido contra Deus. E outros vários pontos.

Veja como cada um tem um julgamento para a crença do outro. Mas note bem como cada julgamento é formado com base em alguma idéia, o pressuposto, e como o pressuposto usado por cada um para julgar um mesmo ponto (inferno) são distintos. Ora, se julgamentos diferentes viessem dos mesmos pressupostos então um dos dois estariam errado na formulação do julgamento (raciocínio) e não no resultado. E aí estamos num problema de comunicação inter-religiosa. Alguém só pode falar que o outro está errado (pelo menos logicamente) se partir dos mesmos pressupostos do outro, mostrando-o onde exatamente errou.

Não vamos entrar no mérito de julgar ou não. A crítica (julgamento) quando construtiva leva ao crescimento. Eis o nosso pressuposto.

E a situação na comunicação pode se tornar mais confusa a partir do momento que não entendendo o pressuposto um do outro começam a se aprofundar em seus argumentos. Exemplo: O espírita pode ainda negar o julgamento do protestante porque a Bíblia não é a (única) revelação de Deus ou o protestante pode negar o julgamento do espírita porque este não conhece a conseqüência de um pecado cometido contra um ser infinito e assim por diante. No fim, por acharem que a discussão está circular param de se comunicar um com o outro em pontos religiosos e cada um segue o seu caminho, mas continuam julgando um ao outro.

4. Preferência

Na prática o que notamos é primeiro um desconhecimento (ignorância) dos reais pressupostos do outro. O que se conhece muitas vezes são estereótipos ou interpretações incorretas do outro – uma atitude coerente seria simplesmente perguntar o que o outro quer dizer com tal ponto. Segundo, vemos também uma rejeição da literatura do outro, isto é, ao julgar a crença do outro em vez de procurar entender as fontes de conhecimento deste, procura apenas em fontes daqueles que criticam. É importante pesquisar nas duas para não cair em algum vício daquele que já critica.

Superado todos os problemas de comunicação então, e somente então, pode-se falar em julgamento dos pressupostos básicos ou primários. E aí, realmente entramos numa questão de problema epistemológico de religiosidade e não mais de comunicação (ver paradigma do grego e do judeu). Exemplo: o pressuposto básico de um ateu é a crença na inexistência de alguma divindade e partir daí passa a criar todo um sistema de pensamento (cosmovisão) e passa a viver em função dele. Um pressuposto básico de um espírita é que todas as criaturas (espíritos) são filhos de Deus. Um pressuposto básico de um protestante é que nas questões espirituais a Bíblia é a palavra final. Cada um pode até explicar a razão de crer em tais pontos, contudo não podem provar cientificamente esses pontos. E apenas por uma questão pessoal, subjetiva ou de fé ("eu prefiro crer assim"; "me sinto melhor crendo assim") escolheram tal coisa.

Aliás, os pressupostos primários (axiomas) são necessários para haver o pensamento. Não há pensamento sem partir de algo. A Metafísica (depois de Kant) inclusive não parte mais de um fato ou fenômeno, mas de uma coisa pensante e incontraditória. Muitos estudos físicos e matemáticos são feitos a partir de axiomas.

Logo, por uma questão de coerência e não de tolerância, se os axiomas de duas crenças são distintos num mesmo ponto, eles são excludentes entre si. Ora, mesmo que houvesse de um a intenção de não ofender o outro, é preciso ficar claro que o respeito deve haver em tolerar a convivência do outro e não em aceitar a crença do outro. Agora se os axiomas entre eles não são excludentes obviamente passa a se caracterizar fanatismo ou pré-conceito por parte daquele que deve (logicamente) aceitar o outro.

É preciso então diferenciar problema epistemológico de religiosidade com problema de comunicação. O primeiro envolve a aceitação em torno dos axiomas, e o segundo em torno do entendimento da cosmovisão do outro. Ora, se alguém não entende a cosmovisão da crença do outro não pode julgar com honestidade e verdade esta mesma crença.

5. Aceitação ou Rejeição

Sem um entendimento verdadeiro dos pressupostos de uma crença, a aceitação ou rejeição da mesma pode não ser verdadeira, mas apenas arbitrária.

A escolha então seria baseada mais numa impressão pessoal ou circunstância do que numa convicção da crença. A convicção seria o entendimento dos pressupostos e das implicações de uma crença. Ora, muitas pessoas aceitam ou fazem parte de uma religião, ideologia ou prática não por convicção, mas por tradição (comodismo), momento (presenciou milagres e acontecimentos estranhos) ou por emoção (nela se sente bem e protegido), entre outros. Nem é necessário citar as possíveis conseqüências nocivas de tal escolha arbitrária.

Aliás, alguém que pertence a uma religião pode descobrir que aceita os mesmos pressupostos de outra religião ao estudar os pressupostos básicos desta outra crença, apesar de ter sido ensinado a não crer nesta. E aí ela deve procurar saber onde ocorreu o erro de chegarem a conclusões diferentes se usaram dos mesmos princípios básicos. Um exemplo da causa de um erro pode ser o uso incorreto da Hermenêutica (ciência para interpretação de texto). Ora, duas religiões podem interpretar um mesmo texto, contudo chegam a conclusões diferentes porque uma deixou de utilizar alguma regra hermenêutica essencial para determinadas situações. Outro exemplo de causa de erro seria a ignorância quanto a um assunto científico ou mesmo do uso da razão.

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