Entendendo Diferenças Religiosas - II

Vejamos agora um comparativo entre duas religiões bem conhecidas no Brasil - Protestantismo e Espiritismo - com relação a um ponto único: Inferno.

1.

Característica (Inferno)
Protestante
Espírita
1
Como é determinado o grau de sofrimento?
Procedimentos
Procedimentos
2
Existem níveis de inferno?
Sim
Sim
3
Onde?
Um lugar gerado conforme a má natureza das criaturas.
Um lugar gerado conforme o baixo nível do espírito.
4
Quanto tempo dura?
Eternidade
Enquanto não evoluir
5
Quem controla?
Deus
Homem
6
Qual a natureza?
Punitiva
Disciplinar


Primeiro, vamos entender as semelhanças na tabela acima (em itálico). Aliás, até o final da análise desse tópico veremos que todas as características acima serão semelhantes, se considerando um(s) determinado pressuposto, e continuarão como estão se colocarmos outro(s) pressuposto(s).

O inferno no protestantismo é tão "horrível" em termos de sofrimento quanto no espiritismo, porque a forma como é determinado o sofrimento é semelhante em ambos: com base num princípio de justiça – cada um recebe conforme o que praticou e não conforme a raça, a nação, a descendência, a cor, o status social, etc. Portanto o inferno (estado de punição) não será igual a todos para não deixar se ser justo, mas não deixará de ser um inferno para cada um.

Isso parece contrariar o senso popular a respeito do inferno protestante em que todos os ímpios vão para o mesmo “lago de fogo e enxofre eterno”, não importa o que fez. Por outro lado parece contrariar também a crença espírita na inexistência do inferno. Vejamos as seguintes citações de protestantes: “em vez de igualdade absoluta, a Escritura indica uma desigualdade infinita na punição. Haverá 'poucos açoites' e 'muitos açoites'.”[1]; “O inferno será uma conseqüência do juízo, onde Deus retribuirá a cada um segundo o seu procedimento”[2]. E agora uma citação de espírita: “Em se tratando, pois de entidades não evoluídas, a ambiência astral manifesta-se como a exteriorização da imaginação de cada um (...) O repouso (ou paz) só poderia provir de seu próprio âmago, de seu coração: e justamente aí reside a insatisfação frustrada e a rebeldia inconformada, que se projetam no intelecto, o qual, ao pensar, plasma os ambientes pavorosos em seu redor.”[3] Note como o sofrimento no inferno protestante terá como base o mesmo critério de justiça do inferno espírita e por isso pode apresentar níveis diferentes para cada pessoa. E perceba como um inferno espírita poderá existir quando o espírito se encontrar numa situação que possa criar um ambiente tão semelhante ao seu horrível estado evolutivo – praticou tantas maldades que passou a viver num ambiente tão ruim quanto o seu estado. A terceira característica apresenta uma diferença apenas de linguagem, em essência quer dizer a mesma coisa da segunda característica.

A negação do inferno cristão tradicional (protestante e católica) por parte do espiritismo é na verdade com relação à punição eterna – “Por que alguém é punido eternamente por crimes cometidos em um tempo tão finito?”. Porém quando um espírita diz não acreditar no inferno implicitamente está querendo negar a imutabilidade do inferno (a impossibilidade de sair do inferno) e não a possibilidade de viver eternamente num lugar de sofrimento. E aqui começamos a ressaltar a importância da adoção de um outro pressuposto: a natureza da liberdade moral. O sentido dessa liberdade será o pressuposto principal para entendermos as características do inferno de cada crença. Portanto essas características se diferenciam por causa não da doutrina do inferno em si, porém da doutrina da liberdade moral. Quando se entender a(s) concepção de liberdade moral poderemos compreender então a razão dessas três últimas características. Aliás, a noção contrária do inferno, o paraíso, também é intimamente influenciada por esse sentido de liberdade.

2.

Geralmente não é considerado por um espírita que alguém possa viver eternamente num lugar de sofrimento, porque se acredita que Deus ajudaria todo espírito a sair dessa condição – oferecendo meios sem interferir interiormente na decisão, o “repouso (ou paz) só poderia provir de seu próprio âmago” –, contudo por causa de um conceito de liberdade moral normalmente usado pelo espiritismo, há a possibilidade do espírito rejeitar a ajuda de Deus se não evoluir durante toda a eternidade. Esse espírito pode escolher viver assim apenas por uma questão de querer exercer seu direito de liberdade e não por uma razão lógica ou moral. Note que existe a crença de que Deus fará de tudo para nenhum espírito chegar nessa condição indesejada – “no fim todos serão salvos” – entretanto por uma questão lógica pode haver a possibilidade de tal coisa não ocorrer. Aliás, por isto algumas crenças orientais são fundamentas no equilíbrio entre o mal e o bem ou no "eterno retorno". Nestes, de alguma forma o mal nunca deixará de existir porque sempre haverá uma criatura moral que praticará algum mal e sempre se levantarão aqueles para impedir este mal de gerar o caos total. E assim viveremos uma história cíclica de altos e baixos.

O mesmo problema ocorre para alguns protestantes, principalmente entre arminianos e pentecostais. Nestes é considerado que o paraíso será tão bom na presença de Deus que ninguém terá motivos para pecar ou no inferno todos continuarão a serem tão maus que as punições não cessariam. Mas alguém pode contrariar todas as expectativas, inclusive a divina, e viver assim também apenas por uma questão de querer exercer seu direito de liberdade e não por uma razão lógica ou moral, caso estejamos considerando o mesmo conceito de liberdade usado pelo espiritismo. Dessa forma não se pode mais garantir que o paraíso continuará um paraíso – um lugar sem disciplina ou punição – para quem pecou e nem um inferno para quem obteve consciência do erro de seus atos e mudou moralmente. Note que existe a crença de que Deus fará de tudo para ninguém no céu vir a pecar novamente, entretanto por uma questão lógica pode haver a possibilidade de tal coisa não ocorrer. Aliás, o que faltou para Adão no Éden?

A finalidade de citarmos duas possibilidades incomuns e idênticas é que se o pressuposto usado for o mesmo chegamos à mesma conclusão a respeito de um ponto, independente de serem crenças diferentes. Portanto o inferno protestante é tão eterno quanto o espírita, se partindo do mesmo conceito de liberdade moral usado normalmente pelo espiritismo – comumente chamado de livre-arbítrio e assim o chamaremos. Neste ponto o que vai diferenciar o conceito de inferno de um do outro será a sua finalidade: no protestantismo a finalidade é ser eterna e no espiritismo é ser temporário, contudo a possibilidade de ambos serem iguais é a mesma. Por isso, a impressão do inferno no espiritismo ser mais consolador do que o protestantismo é apenas no discurso.

Assim o inferno protestante é predestinado a ser eterno enquanto o inferno espírita é predestinado a ser temporário ou quase inexistente, porém essa predestinação é finalista (é uma finalidade mais provável, não necessariamente certa de ocorrer) e não causal (é um propósito garantido logicamente por uma causa, cujo efeito é inevitável).

Vejamos como ficaria a nossa tabela agora com essas novas considerações:

Concepção normalmente espírita de liberdade moral (livre-arbítrio)
Característica (Inferno)
Protestante
Espírita
3
Quanto tempo pode durar?
Eternidade
Eternidade
4
Quem pode controlar?
Homem
Homem
5
Qual natureza pode ser?
Punitiva, se eterno.
Disciplinar, se temporário.
Punitiva, se eterno.
Disciplinar, se temporário.

Como a eternidade do inferno é uma possibilidade no espiritismo, porque no fim das contas depende do homem, de como vai usar sua liberdade, da mesma forma Deus no céu protestante não pode garantir a permanência de alguém se pecar no paraíso. Então não há relevância no fim das contas da natureza disciplinar do inferno já que de nada valeria algum aprendizado advindo do sofrimento se continuaria na mesma situação punitiva.

3.

Historicamente - com base na Reforma Protestante - as igrejas protestantes utilizam outra noção de liberdade, não popular entre os cristãos e normalmente não conhecida pelos espíritas.

Essa outra noção de liberdade engloba conceitos próprios: livre agência, verdadeira e perfeita liberdade [4]. Houve uma exposição sistemática dela por Agostinho e foi muito defendida pelos reformadores, principalmente Lutero e Calvino.

Considerando esse novo conceito de liberdade, outro pressuposto, voltamos de fato à tabela inicial. Mas para isso precisamos também considerar um outro tipo de pressuposto com relação aos efeitos das más práticas morais, exatamente para responder a seguinte questão: “Por que alguém é punido eternamente por crimes cometidos em um tempo tão finito?”. É necessário então entendermos como esses efeitos são vistos na concepção espírita e protestante.

Na concepção espírita o efeito de um mal praticado virá inevitavelmente na mesma moeda para quem cometeu – conhecida como Lei da Causa e do Efeito, que também passa a ser chamada de (lei da) justiça divina porque é Deus quem a criou. Dessa forma todo procedimento, seja bom ou ruim, provocará suas conseqüências na mesma medida, seja na própria vida onde cometeu, na próxima reencarnação ou no mundo espiritual – onde aqui o espírito pode ficar preso num tipo de inferno dependendo do estado em que se encontra e permanecer assim.

A concepção protestante desses efeitos também não é diferente – cada um recebe conforme praticou – contudo é acrescentado um novo item importante: a pessoa (e não apenas o ser) de Deus: “enquanto o pecado como um estado é dessemelhança de Deus, como um princípio é oposição a Deus e como um ato é transgressão da Lei de Deus, sua essência é sempre e em toda a parte egoísmo”[5]. Logo, quando alguém peca, ele não só comete uma maldade do ponto de vista pessoal (contra si mesmo ou alguém finito), mas também contra a pessoa de Deus (um ser infinito). Este é também um pressuposto que não é levado em conta (desconhecido) para o espiritismo. Deus não é prejudicado por causa de tal ato. É uma ofensa apenas legal e não física. Diferente de quando alguém nos ofende e podemos então nos sentir prejudicados.

O grau de punição de um crime não é determinado pelo tempo de sua execução, mas pela gravidade de seu ato. No espiritismo não é diferente. Se um ladrão rouba um banco e demora uma hora para completar seu ato criminoso não pagará uma pena maior que a de um assassinato durante o roubo. Foi a gravidade do ato que determinou a pena do crime e não o tempo decorrido desse crime. Ora, se um espírito comete alguma maldade numa vida passada ele não receberá a mesma maldade com o mesmo tempo, mas com a mesma intensidade do mal cometido antes. Baseado nisso, no protestantismo acrescenta-se além da gravidade do ato em si perante os seres finitos, a ofensa a um ser infinito, em especial à santidade de uma pessoa de ser infinito. É necessário então, na mesma intensidade, se alguém pecar contra um ser infinito, pagar com a eternidade para quitar a dívida de seu ato. Por isso no protestantismo se fala da infinita malignidade do pecado, porque tem um efeito para Deus de ofensa infinita. Por causa desse pressuposto – a infinita malignidade do pecado – não ser levado em conta pelo espírita é lógico e natural concluir que seria injusto castigar alguém a um inferno eterno por pecados cometidos num tempo finito, apesar de mesmo assim é incorreto falar de tempo dentro do espiritismo porque um espírito na próxima encarnação pode passar toda uma vida sendo disciplinado por algo cometido numa vida anterior por alguns minutos, isso por causa da gravidade do ato.

A santidade de Deus então passa a ser o motivo determinante da eternidade do inferno num sentido legal, justo ou lógico, enquanto essa outra noção de liberdade moral passa a ser o motivo da impossibilidade física de sair do inferno – porque pela definição dessa liberdade moral quem está no inferno nunca vai querer sair do mesmo ou quem está no céu nunca vai querer sair do mesmo, livremente com base na sua própria natureza. Portanto o Deus do protestantismo só aparenta mais “implacável” porque não pode deixar de obedecer pressupostos estabelecidos – infinita malignidade do pecado e noção diferente de liberdade moral. Ora, o Deus do espiritismo só aparenta mais “bonzinho” porque obedece a pressupostos próprios que o impedem de ser diferente.

Característica (Inferno)
Protestante
Espírita
Pode sair?
Não
Sim
O que impede de sair?
Natureza moral imutável
Uso do livre-arbítrio
Por que a eternidade?
Santidade da pessoa de Deus
Enquanto não evoluir

Portanto note que segundo o protestantismo quem está no inferno não vai se arrepender de seus atos ou passar a ter boas ações porque sua natureza como um todo é imutavelmente má, por isso não é que não seja intenção de Deus retirá-lo de lá quem esteja sofrendo e tenha mudado de idéia, porém seria contra-senso quem não quer sair forçar a sair. Da mesma forma ocorre com quem estará no paraíso, pois possuindo uma natureza imutavelmente boa não pecará nunca mais. Não se pode, portanto, julgar a eternidade do inferno protestante com base num conceito de liberdade que não foi devidamente considerado. O mesmo vale para a questão do efeito do mal praticado. Não se pode julgar também a eternidade do inferno protestante com base numa concepção de efeito de ato imoral praticado que não leva em conta a pessoa de Deus.

4.

As distintas características da doutrina do inferno de cada crença nada mais são do que conseqüências lógicas dos diferentes pressupostos utilizados por cada crença. Os pressupostos de liberdade moral e das conseqüências de males foram essenciais para o entendimento de diferentes concepções de inferno. Nenhuma é mais verdadeira do que outra, pelo menos do ponto de vista lógico com base em seus axiomas.

Um exemplo comum de falso julgamento por causa dos pressupostos incorretamente usados é com relação a Deus como Pai:

Característica (Inferno)
Protestante
Espírita
1
Pode haver um filho de Deus?
Não.
Sim.
2
Como se torna um filho de Deus?
Por meio legal – se for justo diante de Deus.
Por meio natural – se for criatura de Deus.

No inferno protestante não pode haver qualquer filho de Deus, porque exatamente isto atesta que eles não podem estar lá. Por outro lado, num inferno espírita pode haver um filho de Deus, contudo com a possibilidade de sair do mesmo. Portanto é incorreto partir do pressuposto espírita de que todos já são filhos de Deus bastando existir para julgar a crença protestante do inferno.

O julgamento de uma doutrina, sem o conhecimento dos pressupostos da mesma, não passa de juízo falso ou desnecessário quanto se verifica que são principalmente resultados de certos pressupostos. Nesse sentido é perda de tempo a discussão inter-religiosa em torno da doutrina do inferno, quanto na verdade deveria ser em torno de outras doutrinas, onde talvez se comprovando alguma falha lógica intrínseca se comprovaria a sua falsidade. Seria interessante então estudar, por exemplo, a concepção de liberdade moral de cada uma.

5.

1. Artigo eletrônico da Internet: O Inferno – Uma Perspectiva Bíblia. Jorge Pinheiro. Bíblia World Net. Endereço: www2.uol.com.br/bibliaworld/igreja/estudos/infer003.htm. Data: 03/09/2005.

2. idem.

3. Artigo eletrônico da Internet: A Ação de Obsessores. Carlos Torres Pastorino. Endereço: http://www.espirito.org.br/portal/artigos/pastorino/a-acao-de-obsessores.html. Data: 02/09/2005.

4. Artigo eletrônico da Internet: A Liberdade Humana. Rev. Gildásio Reis. Endereço:
http://www.monergismo.com/textos/livre_arbitrio/liberdade_gildasio.htm.

5. Artigo eletrônico da Internet: A Doutrina do Pecado. Thomas Paul Simmons, D.Th. Endereço: http://www.monergismo.com/textos/pecado_tentacao/doutrina_pecado.htm.

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