Até que ponto podemos atribuir a culpabilidade...


"Se toda escolha é um exercício de liberdade (Kant, Sartre), mas há relações de poder que coagem os indivíduos a ações (Foucault, Marx). Até que ponto podemos atribuir a culpabilidade de um crime ao indivíduo (ou ao estado)?"

A cilada desta questão é maravihosa! Não é sem motivo que gerou tantos séculos de discussões e busca de soluções. Essa questão também está presente em outras esferas de preocupação (e de meu interesse particular): entre religiosos e teólogos, por exemplo.

MAS em que sentido, ou melhor, gênero de discurso, todos os termos empregados se articulam mutualmente sem ambiguidade? E se um ou mais desses termos se articulam em gêneros diferentes, esse gêneros se articulam também entre si sem ambiguidades? E por quê essa preocupação com ambiguidade?

Antes de continuar, os "termos" aqui são "escolha", "liberdade", "relações de poder", "ações", "indivíduo", "culpabilidade", "estado" etc.

Quanto à primeira pergunta, quando digo "gênero de discurso", refiro-me a um vocabulário discursivo em que o papel inferencial de todos os termos empregados estão mutuamente definidos. Se não estão bem definidos, então há um vocabulário ruim ou incompleto, mesmo que já sendo praticada por alguma comunidade, apesar de alguma limitação aqui ou acolá. Um exemplo de gênero é a Física, mas poderia ser a Matemática, ou a Ética, ou até o esqueminha das palavras leste-oeste.

Quanto à segunda, pode haver mais de um gênero num discurso? Sim! E de maneira consistente (sem ambiguidade de gênero), quando a articulação entre os gêneros está bem definida, assim como nos termos. Exemplo disso é a Físico-Matemática, um gênero intermediário cujo discurso sobre entes físicos emprega noções matemáticas ("não existe linha física"), ou a Bioquímica.

Quanto à terceira, como posso reclamar um direito ou um dever quando há ambiguidade na reclamação? Até posso, obviamente, mas o resultado pode ser tão ambíguo como a reclamação. Como posso participar, nos direitos e deveres, de uma comunidade, sem manusear suas próprias regras sociais? Até pode, como um bebê que é corrigido pelos pais.

Até aqui foquei uma apresentação de um problema maior da questão, não o problema colocado pela questão, mas o problema em que a questão está comprometida, muito provavelmente sem perceber. A cilada da questão é que parece colocar um impasse, considerando que está bem clara a relação, interação, articulação ou inferência entre os termos. Porém (meu ponto) há ambiguidades ali, ou um simples "erro categorial".

O que está envolvido ali? Questões físicas, metafísicas e éticas? Como esses gêneros estão presentes (se articulam) ali entre os termos? Esta postagem obviamente não vai dá conta do que se está falando, porque meu ponto não é entrar no mérito de cada gênero, nem de suas articulações, porém colocar outras questões-caminho.

Se a "culpabilidade" (responsabilidade) está sendo empregada como uma ação ética, é preciso diferenciar da responsabilidade de uma criança, de um animal, que não é moral, mas que mesmo assim exerce voluntariamente suas ações não-éticas (ação biológica, física, computacional etc). Nesse sentido, de não-moralidade, não é um animal ou uma criança responsável por suas ações? Mas que articulação e gênero discursivo de "responsabilidade" e de "ações" estão sendo usados na questão? A "liberdade" ou "escolha" está sendo articulada, sem a ambiguidade que se deseja (no mesmo gênero ou em gêneros diferentes), com "culpabilidade" e "ações"? Uma criança ou um animal é o mesmo que um adulto que delibera (!), no "exercício de liberdade"? 

Se essa deliberação é uma ação ética, como articulá-la (se possível) com outras ações não-éticas? Veja que a deliberação aqui envolve um raciocínio prático não presente no animal e na criança (ainda), e que todas essas ações, na verdade, estão "ocorrendo" ao mesmo tempo, no mesmo sujeito, pois estão sendo enxergadas por diferentes gêneros de discurso. Isto é, vejo uma bola de futebol, mas ao mesmo tempo, "vejo" um ponto geométrico, uma mistura de substâncias químicas, um estado físico sólido, um sinal dos deuses etc.

Por quê tão facilmente responsabilizamos um programador por um bug num programa, mas tão dificilmente Deus pelas ações de suas criaturas? Porque antes há um confusão na maneira como as noções "responsabilidade" e "ação" são articuladas. E isso é só o primeiro passo. O segundo, acredito, envolve construir gêneros bem articuláveis numa sociedade ética, para que a (dis)concordância seja o mais frutífero possível, para o conhecimento de todos.

Portanto, a questão inicial poderia ser reformulada de várias maneiras, mas o ponto é que é preciso buscar uma formulação adequada, que se encontrada, talvez o problema se dissolva antes de existir ou leve a outros melhores caminhos (linguísticos). Alguns exemplos de reformulação, que evidenciam o problema da ambiguidade:

1. [Considerando apenas um gênero] Se toda escolha <ética> é um exercício <ético> de liberdade <ética>, mas há relações de poder <ético> que coagem os indivíduos <éticos> a ações <éticas>, então até que ponto podemos atribuir a culpabilidade <ética> de um crime <ético> ao indivíduo?

2. [Considerando três gêneros] Se toda escolha é um exercício de liberdade , mas há relações de poder que coagem os indivíduos a ações , então até que ponto podemos atribuir a culpabilidade <ética> de um crime <ético> ao indivíduo <ético-físico>?

E assim por diante... Com esses exemplos, pensa-se logo numa abordagem lógico-semântica, que seria bem interessante a aplicar.

E quais as influências (in)consistentes desses meus apontamentos? O caráter explanatório da lógica e ciência de Aristóteles por Lucas Angioni, pragmatismo de Richard Rorty, projeto do conceitual de Robert B Brandom, terapia filosófica de Austin, Sellars, entre outros.

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