José Mayer, Aristóteles e a responsabilidade nossa de cada dia


Caso José Mayer: atrizes saem em defesa de figurinista no ‘Vídeo show’

caso José Mayer particularmente me fez lembrar um problema filosófico relacionado, presente desde a antiguidade, aproximadamente 350 a.C., a partir de Aristóteles, com a tese da ação humana que é ética, ou melhor, dos critérios pelos quais alguém é responsável moralmente pelos seus próprios atos.

O filósofo desenvolve essa tese na obra "Ética a Nicômaco", obra em questão aqui (há outras, consideradas anteriores, sob o mesmo tema, como a "Ética a Eudemo" e a "Carta Magna"). O que falarei serão alguns pontos relevantes, entre o caso e o problema, de memória, das minhas leituras da obra, sem citação a trechos específicos, sem utilizar necessariamente algum vocabulário técnico filosófico.

1. Aristóteles faz uma distinção entre a responsabilidade não-moral dada a um animal ou a uma criança e a responsabilidade moral dada a um adulto. Ambas responsabilidades são derivadas de um ato caracterizado por ser voluntariedade, isto é, não foi pelo menos forçado por algum agente externo - uma espécie de autoria natural, pois, por exemplo, ninguém segurou sua mão.

2. Para haver imputação moral (ser censurado ou elogiado moralmente) é preciso algo mais além da voluntariedade: uma deliberação ética. Basicamente essa deliberação envolve a consciência prática (uma espécie de inferência conceitual prática) das circunstâncias consideradas no ato (quem, como, quando, por qual meio, contra quem, com base em quê, que ética etc). Nessa deliberação, um ponto crucial é saber o quanto de uma ou mais dessas circunstâncias foram ignoradas - ignorar é não considerar o que se conhece. Quanto maior essa consciência, maior o poder de deliberação, por conseguinte de autoria ética. Daí tão importante aqui a virtude da prudência (assunto para outro momento).

3. A deliberação ética não é uma mera inferência teórica, de premissas a uma conclusão, como se o problema fosse a falta de uma estrutura lógica formal no pensamento, que pudesse atestar a veracidade do fim a alcançar ou dos meios utilizados. Ora, antes de Aristóteles, muitos consideravam a akrasia (saber bem que algo é errado e mesmo assim cometê-la) algo impossível de acontecer, porque não consideravam a formação do caráter ético (a estrutura material da consciência prática), a partir do hábito ético, formado de deliberações éticas sucessivas, praticamente invisíveis, ao longo da vida, especialmente depois da infância. Antes só levavam em consideração o conhecimento ético teórico, como se conhecendo teoricamente bem algo, evitaria fazer algum mau relacionado a isso. (Saber teoricamente bem como ficar forte não te faz forte, de maneira nenhuma.)

Com esses pontos, a ética aristotélica estabeleceu que a virtude ou o vício são disposições éticas (uma espécie de segunda natureza) que não são naturais, divinas ou teoricamente aprendidas, mas habitualmente desenvolvidas, a partir do que se pode viver, com a ética que se tem disponível. Desse modo, uma pessoa que passa a vida reclusa, fora da sociedade, dos dilemas éticos de cada dia, na verdade, tem uma força ética aparente - talvez não suporte a primeira tentação. Por outro lado, aquele que vive no meio, não tem desculpas, quando mostra que já tinha ciência do costume ou da lei em questão. Assim a pessoa virtuosamente madura delibera bem as suas ações éticas, num determinado assunto, ao contrário da pessoa viciosa. 


Esquema ilustrativo das noções principais

Hoje temos uma crise ética geral, no sentido de que nem mais sabemos como explicar uma ação ética responsável em termos de um vocabulário consistente, como o de Aristóteles. Atualmente muitas pessoas apelam para uma falsa involuntariedade, sem nem recorrer a uma deliberação deficiente. É como se houvesse uma "força maior", contra o próprio juízo ou conhecimento moral, como se fosse involuntário de tão forte. Geralmente essa força é atribuída a uma formação histórica social ou psicológica.

José Mayer apelou para a sociedade machista, porém nos termos éticos da maioria atual seria até desculpável, já que outros apelam para a bebida, para as injustiças sociais, para as ciladas do diabo, para a vontade de Deus, para o destino, para o meio etc. Se pelo menos a discussão fosse em torno de uma deliberação deficiente, a discussão seria até melhor ou consistente, mas nem chega a tanto geralmente.

E aqui está o problema central em não considerar o desenvolvimento, praticamente invisível, do caráter ético, nessa história pessoal. Como a pessoa aqui não tem um filme consciente, de cada ato formador do hábito ético, estilo seriado Black Mirror, então apela a uma memória já bem limitada e conveniente, no mínimo. (Ninguém na prática acompanha meticulosamente o desenvolvimento de cada músculo durante um treinamento duradouro. Apenas ver um certo resultado após um tempo.)

Somos, então, responsáveis não apenas por ações éticas, mas pelas formações éticas que derivam tais ações. Entretanto essa natureza secundária ética, em Aristóteles, não é rígida como a natureza em geral, de animais e das coisas (mas isso é pano de fundo para outra história). O ponto aqui é a responsabilidade nossa de cada dia que nem mais reconhecemos como tal nos dias de hoje.

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