Pedras para humildade - III


A segunda pedra
“A humildade não é a depreciação de si, ou é uma depreciação sem falsa apreciação. Não é ignorância do que somos, mas, ao contrário, conhecimento, ou reconhecimento, de tudo o que não somos” (André Comte-Sponville)

Um homem estava em dúvida a respeito de um ponto que seu professor de matemática elaborou, que era a seguinte pergunta: “Quando retiro os números pares de um conjunto infinito de números (naturais) estou retirando a metade dos números desse conjunto infinito?” Já sua filha de seis anos estava pensando sobre como ela veio ao mundo, e seu pai explicou da seguinte forma: “Eu e sua mãe gostávamos muito um do outro e pedimos ao amor para te criar e um dia você apareceu e foi crescendo dentro da barriga dela até sair”. Na primeira situação aquele homem não consegue afirmar coisa alguma porque não é (conhece) infinito para assegurar sua resposta. E a menina se sente aliviada com a explicação antropomórfica do pai, que não é exaustiva, mas é verdadeira.

Para quem crer na possibilidade de conhecer todas as coisas seria humilhante afirmar a sua impossibilidade, principalmente relacionada a coisas que convivemos dia-a-dia. O que tem dentro do Sol? Como o nosso cérebro funciona? Como o Universo se formou? Como é o DNA? Ops! Já descobriram isto. Que bom. Isto realmente mudou a vida daqueles que não viveram para presenciar esta descoberta ou evolução científica, diante de Deus.

Geralmente quando pensamos em santidade logo vem a nossa mente a idéia de moral, ética ou retidão. E por isso muitos pensam ser Deus, mostrado na Bíblia, uma criação humana para a Igreja ter poder sobre os homens. Contudo, independente disto, na Bíblia apenas uma palavra é referenciada a Deus três vezes sucessivamente: santo. Este tipo de repetição significa elevá-lo ao grau de superlativo. Interessante é que esta repetição não ocorre com a palavra amor, justiça, conhecimento... Assim diz as Escrituras: “Não há santo como o SENHOR, porque não há outro além de ti” (Salmos 2.2). Quando falamos que Deus é “Santo, Santo, Santo” dizemos que Ele está além dos limites comuns, além do que podemos conhecer ou conceber, além do que podemos formalizar ou raciocinar como seres finitos.

Quando se fala em ira de Deus geralmente há um ar de ceticismo porque se conclui ser a ira um sentimento humano que Deus não poderia “sentir” ou ter por se tratar de um Ser infinito, perfeito, absoluto, imutável... É verdade! Porque a forma como Deus se revela a nós é verdadeira e não exaustiva, porque Ele é Santo, Santo, Santo. Se Ele “sente” ou derrama Sua ira não é da mesma forma como a nossa, entretanto Ele revela a nós essa ação de uma forma que entendemos ser uma ação de ira, para agirmos conforme fosse uma ação de ira.

Ora, a nossa ira é normalmente fruto de uma mágoa, raiva descontrolada devido a uma ofensa que nos tenha prejudicado, modificou o nosso estado atual, nos tornou instáveis ou até mesmo descontrolados. E por nossa ira nós buscamos (e muitas vezes não conseguimos) de volta nosso estado de espírito anterior prejudicado por uma determinada ofensa. E essa busca pode ser efetuada por meio da justiça praticada sobre quem nos ofendeu ou por mero esquecimento nosso ou por perdão. Mas a ira de Deus não é assim, porque Ele não se prejudica e nem fica instável. Pois o importante ou concebível ou necessário saber é que “do céu é revelada a ira de Deus contra toda a impiedade e injustiça dos homens” (Romanos 1.18) de forma a nos orientar a fazer o que devemos fazer.

Aquela menina se sentiu aliviada com a explicação do pai, porque este a explicou, limitado contudo verdadeiro, de forma que a deixasse aliviada. O importante ou concebível ou necessário era manter a relação entre eles e não explicar a natureza dessa relação, não porque é errado procurar entender tal relação, entretanto porque é tolice não reconhecer nosso limite e se deixar ofuscar por revelações antropomórficas de Deus na Bíblia. Jó, um personagem bíblico, teve que passar por uma pedra para entender isto. Depois de tanto sofrer das desgraças acometidas em sua vida e das acusações de seus “amigos” de que a causa de todo o mal que lhe ocorria era algum pecado que tenha feito, Deus se revela aos questionamentos de Jó, fazendo vários questionamentos também como “Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra?”, “Sabes tu as ordenanças dos céus, ou podes estabelecer o seu domínio sobre a terra?” (Jó 38.4, 33) ou poderíamos dizer em outras palavras: “Conhece a profundeza do Sol ou a dimensão do Universo? Ou todos os números pares de um conjunto infinito?”.
Em nenhum momento Deus dá explicação de suas ações. Se o faz é por graça. Mas os questionamentos de Deus foram suficientes para Jó entender a questão: humildade. Ao passar pela pedra da plenitude do conhecimento, ele então redescobre quem é Deus ao redescobrir a sua real condição diante dEle: “Com os ouvidos eu ouvira falar de ti; mas agora te vêem os meus olhos. Pelo que me abomino, e me arrependo no pó e na cinza” (Jó 42.5, 6). Detalhe: a história de Jó poderia terminar aqui, mas graciosamente Deus mudou a sua vida para melhor do que antes.

Deus não é obrigado a se revelar a nós, nem diante de tudo que nos acontece, nem para nos dar conhecimento sobre as coisas criadas. Há coisas que Ele não quis revelar. E o que Ele revela o faz quando quer, como quer e aonde quer: “As coisas encobertas pertencem ao Senhor nosso Deus, mas as reveladas nos pertencem a nós e a nossos filhos para sempre, para que observemos todas as palavras desta lei” (Deuteronômio 29.29). Não podemos ter a plenitude do conhecimento.

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