Pedras para humildade - X


Uma miragem no rio
“O amor destrói o que sempre fomos para que possamos ser o que não éramos” (Agostinho)

Mesmo num rio de águas vivas podemos ver alguma miragem. Essa miragem dar um certo poder ou conforto próprio ao homem, mesmo com ou sem Deus: a sua liberdade. Expressões como “Você pode escolher qualquer coisa”; “você escolhe seu destino”; “você pode ser qualquer coisa”; “você pode conseguir qualquer coisa, basta escolher, declarar ou crer” exemplificam bem o que queremos dizer. Quando falamos liberdade, não dizemos toda e qualquer liberdade, contudo alguns tipos dela. E nestes tipos talvez estejam a última fortaleza de exaltação do homem.

A capacidade de fazer escolhas é parte inerente do homem. Alguns chamam isto de livre-arbítrio. Não se pode negar isto! Nem se pode negar que o homem escolhe o que quer. Contudo, certas escolhas são mitos. O homem pode escolher e planejar o que tiver vontade, mas esta não é livre para realizar nada contrário à vontade de Deus (mito circunstancial): “Eu sei, ó Senhor, que não é do homem o seu caminho; nem é do homem que caminha o dirigir os seus passos” (Jeremias 10.23). Somos livres para fazer o que queremos, não tudo que concebemos em nossa mente. É um pássaro menos livre se não souber nadar? É um peixe menos livre se não souber voar? Como seres humanos somos menos livres se não pudermos ser como o super-homem da revista em quadrinhos? E como pode, portanto, um ser sem espiritualidade mostrar espiritualidade? “Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque para ele são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente” (II Coríntios 2.14). As Escrituras dizem que nossa vontade é escrava de um coração pervertido: “Viu o Senhor que era grande a maldade do homem na terra, e que toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era má continuamente” (Gênesis 6.5). Ainda assim alguns, dentro ou fora da igreja cristã, crêem que o homem tem uma “liberdade” que nem mesmo Deus possui: o de contrariar a própria natureza (má) ao escolher o bem. Realmente seria humilhante aos que crêem assim se fosse uma miragem. E Deus certamente seria glorificado nisto, pois não haveria mais nada tão poderoso quanto Ele mesmo, no momento da fantástica escolha do homem.

Ora, quando Deus quer algo para si nada o impede (vontade soberana ou secreta), mas o mesmo, necessariamente, não acontece quando quer algo para o homem (vontade de desejo ou revelada). Vejamos duas passagens: “Porque esta é a vontade de Deus, a saber, a vossa santificação: que vos abstenhais da prostituição” (1 Tessalonicenses 4.3); “Dir-me-ás então. Por que se queixa ele ainda? Pois, quem resiste à sua vontade?” (Romanos 9.19). Certamente vemos que a vontade de Deus pode ter aspectos diferentes.

Ninguém gosta de se sentir invadido. Ora, se um estranho entrasse em sua casa sem ser convidado certamente nos sentiríamos invadidos em nossa privacidade. Seria uma indelicadeza ou falta de educação para conosco e nos sentiríamos muito humilhado se esse estranho tivesse todo o direito de entrar em nossa casa. Entretanto, a misericórdia de Deus é maior que nossa tola segurança ou privacidade das coisas ou de nós mesmos. Há uma palavra que descreve bem isto: “E lhes darei um só coração, e porei dentro deles um novo espírito; e tirarei da sua carne o coração de pedra, e lhes darei um coração de carne” (Ezequiel 11.19). Esta palavra foi dirigida ao povo de Israel inicialmente porque eram pessoas de uma natureza má e de forma nenhuma ouviram os mandamentos de Deus e nem os Seus avisos contra os pecados deles, porque estavam presos a um coração mau. O povo “mortos em seus pecados e delitos” não queria saber ou dar ouvidos ao próprio Deus. E Deus tinha um plano de amor para com eles e muitos foram os alertas e nada mudava. Deus então foi maior em sua misericórdia, pois se não desse um “coração de carne” o amor dEle seria impotente para realmente salvar alguém. Na verdade o valor e a força do amor de Deus está em salvar pecadores: “Nisto se manifestou o amor de Deus para conosco: em que Deus enviou seu Filho unigênito ao mundo, para que por meio dele vivamos” (I João 4.9). O amor de Deus não é um mero sentimento ou desejo de boa vontade aos homens. Às vezes um “estranho” tem que “invadir” a nossa privacidade para no fim descobrirmos e agradecermos que foi melhor assim. Quem se acha seguro de que buscou a Deus só por causa de sua própria natureza ou de si mesmo seria humilhante descobrir o contrário, pois “Não há quem entenda; não há quem busque a Deus” (Romanos 3.11).

Se o leitor está preocupado em colocar responsabilidade em suas próprias escolhas – ou ausentar Deus disto – com seu livre-arbítrio então como algo que nem é mau e nem é bom (neutro) pode fazer uma escolha ou para o mal ou para o bem, sem cair no acaso ou contrariar a própria natureza? E se é fruto do acaso que responsabilidade há nisto? Como nasce um bom fruto de uma árvore má? “Assim, toda árvore boa produz bons frutos; porém a árvore má produz frutos maus” (Mateus 7.17). Paulo negava a neutralidade moral ou espiritual: “porque o que faz não provém da fé; e tudo o que não provém da fé é pecado” (Romanos 14.23). Não existe confusão nesta questão de livre-arbítrio quando se entende a idéia de liberdade segundo a Bíblia. Nela a liberdade é está “preso” a algo que nos possibilita ter todas as coisas. Ora, não é de, por e para Cristo todas as coisas? “Porque dele, e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém” (Romanos 11.36). E se estamos com Cristo não teremos então todas as coisas graciosamente? “Aquele que nem mesmo a seu próprio Filho poupou, antes o entregou por todos nós, como não nos dará também com ele todas as coisas?” (Romanos 8.32). Esta liberdade bíblica proporciona eterna humildade na presença de Deus. A outra gera confusão para quem quer ser humilde diante de Deus ou soberba para quem quer ser ateu, pois no momento do livre-arbítrio se torna tão forte quando o próprio Deus.

Eu não sei explicar como cada átomo está no controle de Deus e ainda assim somos responsáveis por todos os nossos atos. Um dia saberemos, pois ainda não temos a plenitude do conhecimento, contudo devemos ter o cuidado de não cair nos simplismos. Houve um fato com o apóstolo Paulo que nem mesmo ele sabia explicar como ocorreu, entretanto sabia o que devia fazer ou crer: “Conheço um homem em Cristo que há catorze anos (se no corpo não sei, se fora do corpo não sei; Deus o sabe) foi arrebatado até o terceiro céu. Sim, conheço o tal homem (se no corpo, se fora do corpo, não sei: Deus o sabe), que foi arrebatado ao paraíso, e ouviu palavras inefáveis, as quais não é lícito ao homem referir” (II Coríntios 12.2-4). As coisas de Deus nos foram reveladas para sabermos o que devemos fazer independente de a conhecermos em plenitude ou não.

No filme “O Senhor dos Anéis - A Sociedade do Anel”, o hobbit Frodo diante de uma situação extremamente difícil, porque o destino da vida dos habitantes de sua terra estava em suas mãos, falou ao seu amigo e mago, Gandalf, o desejo de que o anel em sua posse “nunca tivesse me sido entregue” e que “gostaria que isso nunca tivesse acontecido”. Não são essas as nossas indagações e desejos em situações difíceis? Mas o mago responde: “Frodo, tudo o que nos acontece não está em nossas mãos decidir, tudo o que podemos fazer é decidir o que fazer com o que nos foi dado”.

Só falamos dessa miragem – sem esgotar sobre o assunto – para que o homem não encontre qualquer resquício de exaltação diante de Deus. Deus não depende dos sentimentos do homem para ser exaltado com toda honra, glória e louvor.

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